O primeiro ouro brasileiro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, foi conquistado por uma mulher. A judoca Rafaela Silva, 24 anos, foi também a primeira atleta negra, entre homens e mulheres, a subir ao lugar mais alto do pódio na Rio-2016. Depois dela, a norte-americana Simone Manuel, 20, sagrou-se como a primeira negra campeã olímpica de uma prova individual da natação na história das Olimpíadas. Ao lado da colega de time Lia Neal, 21, ela fez com que os Estados Unidos tivessem, pela primeira vez, duas nadadoras negras representando o país em uma mesma prova da modalidade — no revezamento 4x100m livre.
“As mulheres entraram nas Olimpíadas, mas nunca todas as mulheres. Estamos tendo um levante negro, preto, significativo no evento. São mulheres que estão se empoderando em espaços onde antes nunca haviam ocupado”, reflete Yordanna Lara Pereira Rêgo, professora e pesquisadora de relações de gênero da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Um movimento que não foi planejado internamente no Brasil, mas que se reflete de fora para dentro. “Não é só a mulher preta brasileira que está se empoderando, mas de todo o mundo e as Olimpíadas evidenciam isso, o que se torna uma porta importante”, explica a pesquisadora.
“Talvez os organizadores e o poder público não tenham a dimensão da ajuda e da colaboração que eles darão no combate ao racismo, na integração do negro no contexto nacional”, disse Luislinda Valois, durante as Olimpíadas do Rio, quando ocupava o posto de secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil. “É uma oportunidade em que toda uma juventude, quer seja preta, branca, azul, amarela, rica, pobre, um se aproxima do outro”, completou, na ocasião.
A vendedora do Rio de Janeiro Rita dos Santos, presente no evento olímpico disputado na cidade natal, ressalta que o preconceito existe e, ao ver uma negra conquistando medalha, é prova de que há muita gente boa dentro das comunidades. Só que elas precisam de apoio e incentivo. “Se você parar para pensar, a Rafaela Silva começou no judô quando morava na Cidade de Deus, mas teve de sair da favela para conquistar o sonho dela”, exemplifica Rita. “Eu sou negra com muito orgulho, mas este é um assunto que tem de ser mais divulgado”, cobra.
A professora e tradutora carioca Rane Souza ressalta tratar-se de um problema presente no mundo todo, mas pontua que esta maior visibilidade em um grande evento é positiva para o combate ao racismo e às desigualdades de gênero. “Fortalece a autoestima dos negros, principalmente das crianças negras, o que tem resultado concreto de engajar mais negros na luta contra o racismo e na resistência e persistência para conquistar uma vida melhor”, justifica.
Para alçar esse objetivo, o suporte financeiro é essencial. Tema delicado para a maioria dos atletas brasileiros. Na tentativa de minimizar essas barreiras, o Ministério do Esporte implementa o Bolsa Atleta desde 2005. Dividido em seis classificações que se distinguem pelos resultados esportivos, o programa de benefício individual aos atletas variam de R$ 370 para aqueles das categorias de base e estudantil até quantias maiores referentes ao alto rendimento.
As bolsas de R$ 5 mil a R$ 15 mil compõem o nível chamado pódio, como é o caso da judoca Rafaela Silva. Já as jogadoras de futebol Formiga e Cristiane, por exemplo, se enquadram no nível “olímpico” (R$ 3.100) e “nacional” (R$ 925). Dos 465 atletas da delegação brasileira que estiveram nos Jogos do Rio, 77% disputaram a competição como beneficiários da Bolsa-Atleta.
Na ginástica artística, a Cidade Maravilhosa foi palco de outra representante da causa negra que, no auge dos 19 anos, impressionou o mundo não apenas pelas maravilhas acrobáticas que apresentou, mas pela personalidade forte. Na primeira participação olímpica de Simone Biles, a norte-americana já levou três ouros e está cotada como a maior ginasta de todos os tempos. Alvo de comparações a ídolos de outras modalidades (homens, por sinal), ela foi categórica: “Não sou a próxima Bolt ou Phelps. Sou a primeira Simone Biles”.
Talvez fosse a relação que Marta quisesse fugir ao ser comparada com Pelé ou Neymar. Para a pesquisadora de ações afirmativas da UFG Yordanna Rêgo, há um levante machista dentro do movimento de maior visibilidade às mulheres negras. “A Marta é o Pelé do futebol e não a Marta em si. Parece que para elevar o feito delas é preciso associá-lo ao de um homem”, explica.
Nada de uma nova Usain Bolt ou Michael Phels, nem nova Pelé ou Neymar, o mundo espera por talentosas Simones, Rafaelas, Martas, Formigas, Bárbaras e tantas outras.
Além de negras, as talentosas atletas que despertaram o encanto dos torcedores na Rio-2016 são mulheres. A Rio-2016 tem recorde de participação feminina nos Jogos Olímpicos: 4,7 mil esportistas. No entanto, não atingiram a igualdade de gênero desde as primeiras Olimpíadas da Era Moderna, em que as mulheres foram proibidas de participar dos Jogos de Atenas-1896. No Rio, elas representam 45% do total de atletas na competição. A primeira participação feminina olímpica foi em Paris-1900, quando tiveram 22 representantes diante de um total de 977 competidores.
No esporte, elas recebem salários e premiações muito abaixo dos homens nas mesmas competições. Mesmo nas exceções — como o Grand Slam de Roland Garros –, o tema não escapa de polêmicas, como a protagonizada pelo tenista Novak Djokovic neste ano. Depois de dizer que os torneios masculinos têm maior visibilidade e, por isso, acredita que os homens deveriam ganhar mais, ele pediu desculpas. Mas há os que colaboram com a causa, como o tenista Andy Murray.
A representatividade das mulheres abre portas para fomentar o debate sobre os percalços enfrentados pelas esportistas e sobre a cultura do estupro. Vítima de agressões pelas redes sociais, a nadadora Joanna Maranhão denunciou a violência sofrida e acabou dando maior visibilidade ao combate do crime. O mesmo efeito de reflexão para a sociedade brasileira e mundial, já que se trata do evento multi-esportivo mais importante do mundo, foram dois boxeadores, um do Marrocos e outro da Namíbia, presos por suspeita de estupro a camareiras na Vila Olímpica.
Os ganhos na igualdade de gênero são sutis, mas simbólicos. As duas maiores potências olímpicas vieram para a capital carioca com maioria feminina. A delegação dos Estados Unidos é composta por 52,6% (292 atletas) de mulheres e a da China conta com porcentagem ainda maior: 61,5% (256). No Time Brasil, dos 465 atletas, 209 são mulheres (45%).
Já que durante o calendário tradicional das competições esportivas, a audiência acaba concentrada nos torneios masculinos na maioria das modalidades, que as Olimpíadas sejam o espaço delas mostrarem seu valor. Desiludidos pelas más apresentações da Seleção masculina de futebol, os brasileiros encontraram alento na determinação de Marta, Formiga, Bárbara e Cia. “Elas jogam em outras épocas do ano que não só Olimpíadas e ninguém dá valor. Nos Jogos, pelo menos, é a chance de ver as mulheres jogarem, porque o futebol feminino não é divulgado”, lamenta a vendedora Rita dos Santos.
Na vitória nos pênaltis que garantiu a classificação do Brasil para a semifinal olímpica entre as mulheres, a equipe foi responsável por atrair o maior público do Mineirão deste ano: 52.660 pagantes. E, para abrilhantar mais ainda a causa, foi a goleira Bárbara, de pele negra e olhos verdes, que saiu ovacionada como a heroína da façanha. Na Cidade Maravilhosa, um grande aglomerado de pessoas se concentrou em diferentes pontos da Zona Portuária, localizada no centro do Rio, vidrados nos telões. Até poucos anos, era difícil imaginar tantos brasileiros reunidos para ver uma partida de futebol feminino.
*Reportagem veiculada em 15/8/2016 no Correio Braziliense, como parte da cobertura dos Jogos Olímpicos do Rio-2016
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