A Seleção Brasileira de futebol teve a primeira técnica mulher apenas em 2016, e olha que foi no comando da equipe feminina. Entre os clubes masculinos, cogitar a contratação de uma treinadora ainda soa como algo espantoso. Se nos bancos de reservas ou em cargos de gestão as mulheres são quase invisíveis, na arbitragem elas ganham um pouco mais de espaço. Então, o preconceito passa para a fase seguinte: resistir ao tratamento desigual no exercício da profissão.
“Todas as vezes em que a gente entra em campo, as pessoas acham que não vamos conseguir apitar as partidas. E isso parte de todos os envolvidos: torcida, jogador, comissão técnica”
Simone Silva, ex-árbitra
A ex-juíza Simone Silva, 42 anos, que atuou no quadro nacional de arbitragem da CBF de 2007 até 2016. “Quando uma mulher estreia, causa mais dúvida do que um homem, e tudo gera suspeita de capacitação.” Ela expõe que sempre sofreu preconceito na carreira. Nos 17 anos de arbitragem, apitou o Campeonato Carioca feminino e masculino e a Série D do Campeonato Brasileiro masculino.
Para a carioca, o peso do erro de um homem é bem diferente da falha de uma mulher. “Nós somos muito mais sacrificadas. Tenho certeza porque vivenciei isso”, desabafa ao lembrar que as desconfianças ocorrem até em situações de acertos. “O futebol é muito masculino, e a gente ainda escuta que lugar de mulher não é no futebol.” Para lidar com a pressão que sofria nas partidas, Simone se lembra que se concentrava bastante para não cometer erros “infantis” no começo do jogo e ganhar credibilidade. “Depois, passei a driblar a pressão com sorrisos, gracinhas e brincadeiras.”
Nem sempre, porém, a estratégia é suficiente. A agora ex-bandeirinha Ana Paula Oliveira — um dos nomes de maior destaque da arbitragem feminina — foi vítima, em 2007, da fúria preconceituosa do então vice-presidente do Botafogo, Carlos Augusto Montenegro. Ele protestou contra dois gols anulados incorretamente pela assistente, com a consequente eliminação do alvinegro da semifinal da Copa do Brasil, em duelo contra o Figueirense. “Ela é totalmente despreparada. Errou dois lances seguidos. Não vejo mulher em Copa do Mundo, não vi mulher na final da Liga dos Campeões nem nas decisões mais importantes do mundo, mas colocaram uma mulher hoje, justo contra o Botafogo”, vociferou, na ocasião.
Fernanda Colombo foi outra bandeirinha atacada por dirigentes de clubes importantes com “argumentos” que fogem ao desempenho profissional. “A gente pega essa bandeira bonitinha. Se ela é bonitinha, que vá posar na Playboy”, disse o diretor de Futebol do Cruzeiro, em 2014, Alexandre Mattos. À época, Fernanda impediu uma jogada que poderia resultar num gol: marcou impedimento inexistente do cruzeirense Alisson, aos 41 minutos do segundo tempo, no clássico que terminou com a derrota do time celeste para o Atlético-MG no Brasileirão.
Ambos os casos envolveram falhas graves, é verdade. Como consequência, além de sofrerem o afastamento, as duas sucumbiram aos ataques preconceituosos e acabaram não conseguindo retomar a carreira. Na ocasião, Ana Paula foi suspensa por 15 dias. Nos treinos para retornar à arbitragem, ela lesionou a tíbia e acabou reprovada no teste físico da Fifa, com direito a polêmica pelo fato de a entidade não a ter isentado do exame físico, já que a bandeirinha era assistente Fifa e estava contundida.
O currículo de Ana Paula, com atuações em finais de estaduais, como São Paulo x Corinthians, em 2003 — foi a primeira mulher a atuar —; e em oitavas de final da Copa Libertadores, em 2005; e com o prêmio de árbitra revelação dos Jogos Olímpicos de Atenas-2004, não foi suficiente diante dos erros no jogo do Botafogo. Naquele mesmo ano, ela fez ensaio fotográfico nua para a revista Playboy, e as críticas à profissional aumentaram. A aposentadoria era questão de tempo e foi anunciada oficialmente em 2012, aos 34 anos.
Fernanda, aos 25 anos, também se diz aposentada da função. Ela ficou conhecida como musa, apelido que ganhou pela beleza, embora tenha trabalhado em mais de 50 jogos profissionais e chegado a ser aspirante Fifa. A carreira ia bem até o fatídico impedimento equivocado no clássico mineiro. Após o afastamento, foram quase dois meses para voltar a exercer a função, mas na Série C do Brasileiro.
Antes da polêmica com o Botafogo, Ana Paula Oliveira atuou na final da Copa Brasil de 2006, entre Flamengo e Vasco. “Fui muito bem, mas foi uma loucura a repercussão”, recorda. Só após 10 anos, Nadine Silva compôs novamente um trio de arbitragem em uma final, desta vez entre Atlético-MG e Grêmio, pela Copa do Brasil 2016. Desta vez, o fato não foi tão noticiado. “Meu lamento foi que levou tanto tempo para termos uma mulher novamente na arbitragem de uma final, mas a forma como foi tratado, com naturalidade, é uma conquista”, comemora Ana Paula
“Meu único medo era se a Nadine tivesse cometido um equívoco na final. As mulheres ainda são muito mais cobradas. Se uma mulher errar hoje em uma situação crucial, acho que a repercussão ainda vai ser maior” pressupõe Ana Paula, agora instrutora e diretora-secretária da escola nacional de arbitragem de futebol da CBF. No entanto, ela acredita que seria menor do que foi nos tempo em que ela atuava.
“Na minha época, era diferente. Hoje, não dá para aceitar mais isso. É inadmissível tratar homens e mulheres diferentes com erros iguais”
Ana Paula Oliveira, ex-bandeirinha
Ainda que seja inadmissível, até mesmo alguns jogadores reparam na exigência excessiva com a arbitragem feminina. Otávio Henrique Santos, meia do Atlético Paranaense, reconhece o tratamento diferenciado. “Você vê bastante erro na arbitragem em geral, mas como não é tão comum ver mulheres na função, as pessoas analisam mais e ficam mais atentas em cada lance.” Para ele, a presença feminina dentro de campo não muda quase nada em um jogo. O único ponto diferente é o tom de voz na hora de reclamar. “A gente fica meio constrangido para reclamar e quando é uma mulher temos um cuidado maior na hora de falar”, explica.
Por Maíra Nunes e Maria Eduarda Cardim
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