Lima (Peru) — Duas vezes melhor do mundo no futebol de 5 (modalidade praticada por cegos e pessoas com baixa visão), o brasileiro Ricardinho busca o quarto título com a Seleção Brasileira nos Jogos Parapan-Americanos de Lima-2019. O Brasil enfrenta a Argentina, às 19h (de Brasília), nesta sexta-feira (30/8). Não há do que reclamar sobre as instalações onde disputa a competição. Tudo novíssimo e com acessibilidade para ele e pessoas com outras deficiências físicas. O oposto da realidade que cerca o complexo esportivo da Villa María del Triunfo, localizada em uma das regiões mais pobres e violentas de Lima. Com a autoestima acalentada, moradores do local vêm enchendo as arquibancadas e alimentam expectativa de desenvolvimento do paradesporto na região.
“Essas crianças, e comigo foi assim também, estão muito longe dos referenciais de um atleta. Receber um Parapan próximo é fundamental não só para as crianças como para os adultos”, diz Ricardinho. O brasileiro já jogava bola quando ficou cego aos 8 anos, devido a um descolamento de retina. Nascido na Restinga, um dos bairros mais pobres e violentos de Porto Alegre, o gaúcho conheceu a modalidade praticada por cegos e pessoas com baixa visão em um instituto distante duas horas de casa.
“Lá, conheci a bola de guizo (que tem uma espécie de chocalho para fazer barulho)”, conta. Como era difícil o artigo esportivo no comércio local, ele improvisava em casa. “Colocava a bola em uma sacola plástica e, conforme ela se mexia, fazia barulho”, lembra. Aos 15 anos, foi para o primeiro clube. Um ano depois, chegou à Seleção Brasileira. “O esporte é uma ferramenta muito preciosa para mudar uma história de vida”, crava o ala ofensivo.
No meio da favela
A favela de Villa María del Triunfo fica a 25km ao sul do centro de Lima e tem quase 400 mil habitantes. O colorido e a limpeza do complexo esportivo do Parapan se contrastam aos tijolos aparentes das casas instaladas empilhadas umas sobre as outras. Muitas delas, sem telhados, pois a capital peruana é conhecida como a cidade que nunca chove. Nada que diminua o orgulho dos moradores locais.
A arena de Villa María del Triunfo recebeu competições de sete modalidades durante os Jogos Pan-Americanos, entre hóquei e basebol, e sedia o futebol de 5 e o futebol de 7 durante o Parapan. “Tudo está mudado por aqui com esses Jogos. Tudo isso que foi construído será usado pela comunidade que vive aqui. É o que esperamos”, almeja Edgar Sollis, que foi com o filho apaixonado por futebol, Érick Sollis, 12 anos, e a esposa, Consuelo Durand, assistir ao clássico entre Brasil e Argentina no futebol de 7.
Depois de ver os Jogos Paralímpicos do Rio-2016, o brasileiro Lucas da Silva correu para a internet para pesquisar mais sobre a modalidade. Pelo Facebook, o garoto de Franco da Rocha, em São Paulo, encontrou alguns jogadores de futebol de 7 e pediu indicação de clubes. Deu tão certo que, hoje, aos 21 anos, defende a camisa verde-amarela no Parapan de Lima. “É importante um lugar como esse ser construído em uma favela, porque as pessoas podem conhecer e praticar uma atividade física”, afirma o ala da classe FT2. Ele tem o movimento dos membros do lado direito comprometidos por causa da paralisia cerebral, sofrida por falta de oxigenação na hora do parto.
Realidade de pobreza e violência
Também faz parte das regiões mais pobres e violentas de Lima o bairro El Salvador, local onde foi construída a Vila dos Atletas e o Ginásio Poliesportivo, que recebeu a ginástica rítmica e, agora, o rúgbi em cadeira de rodas. “É um orgulho ser um voluntário. Nunca imaginei que um dia ajudaria o meu país a crescer no esporte”, comentou o morador local Diego Mendonza, 18 anos, enquanto ajudava a organizar a fila para os visitantes que assistiriam ao jogo entre Brasil e Canadá pelas semifinais do rúgbi em cadeira de rodas do Parapan-2019.
Sorridente, Diego compartilhou o tom de esperança que paira sobre a vizinhança: “A competição fará muito bem ao nosso distrito daqui em diante. Antes, El Salvador tinha sido catalogado como o distrito mais perigoso de Lima, mas isso vai mudar muito”. Enquanto a Villa María del Triunfo foi classificada pela Polícia Nacional do Peru, em junho, como o 69º distrito mais perigoso do país, El Salvador ficou na 23ª posição da lista que ranqueou 120 regiões. Todas as instalações levantadas para os Jogos de Lima são permanentes e, segundo o Comitê Organizador e o governo peruano, serão usadas para promover o desenvolvimento local e esportivo após os eventos.
Com uma população tão numerosa quanto a Villa María del Triunfo, El Salvador é o 34º no ranking do índice de desenvolvimento humano dos 43 distritos de Lima. Composta por maioria de mestiços e quéchuas, a principal etnia indígena do país, a região começou a ser povoada no início da década de 1970 com invasões e, em 2000, se tornou o principal símbolo de pobreza urbana peruana.
Após receber o maior evento esportivo da história do Peru, porém, a expectativa é de mudanças. Tanto que o governo nacional aprovou uma lei para que todos os peruanos que conquistarem medalha no Pan ou no Parapan ganharão um apartamento na Vila dos Atletas, que foi construída em um terreno vazio e conta com recursos de acessibilidade. O objetivo é compensar o esforço dos atletas peruanos. Há ainda a promessa de que as residências da Vila Pan-Americana que não forem ocupadas por atletas sejam vendidas a preços acessíveis.
Como as instalações ficam depois?
“As instalações seguem sendo mantidas pelo comitê organizador até dezembro de 2019”, afirmou Lucha Villar, presidente do Comitê Paralímpico do Peru. Depois, a gestão do complexo Villa María del Triunfo, por exemplo, será assumida pelo Instituto Peruano de Esportes (IPD, na sigla em espanhol). A meta da nova gestão será promover a massificação das modalidades esportivas que o local recebeu durante os Jogos.
Um plano de legado, desenvolvido desde 2017 pelo governo do Peru com o apoio do governo do Reino Unido, tinha como proposta levar as instalações esportivas para áreas da região metropolitana de Lima, que inclui os bairros de San Luis, San Miguel e Callao, além da Villa Maria del Triunfo e El Salvador. “Isso é um ganho, se pensar a longo prazo e é fundamental. Onde precisa de mais instalações esportivas para o legado? Nessas comunidades. Não adianta levar onde as pessoas são sócias de clube, frequentam academia”, defendeu Andrew Parsons, presidente do Comitê Paralímpico Internacional (IPC, na sigla em inglês).
“Algumas pessoas ainda vieram lamentar sobre o local das disputas do futebol de 7, por ser cercado de comunidades, de favela. Mas isso é legado”, reforçou Parsons, sobre o complexo da Villa María del Triunfo, onde já existia quadras esportivas e passou por melhorias consideráveis. A questão primordial apontada pelo presidente do IPC é que seja oferecido serviços, com professores e infraestrutura. “Para não ser só uma instalação esportiva e virar um lugar onde as crianças joguem bola. É importante que seja um lugar onde se aprenda valores.
*A repórter viajou a convite do Comitê Paralímpico Brasileiro