Carol nasceu com Síndrome de Morning Glory, alteração congênita na retina que reduz seu campo de visão. Foi criada na piscina pelo esporte ser uma forma de encarar os medos. Fez inclusive travessias em águas abertas. Migrou da natação convencional para a paralímpica apenas aos 33 anos. Um ano depois, já tornou-se campeã mundial e é favorita nas Paralimpíadas de Tóquio-2020. Passou por perrengues e superou qualquer intimidação com conquistas que ela conta com detalhes emocionantes na entrevista abaixo.
Porque entrou para o esporte paralímpico apenas aos 33 anos, no fim de 2018?
Eu não conhecia o esporte paralímpico. Eu sou de Caruaru (interior de Pernambuco) e achava que existia uma categoria só, eu não tinha interesse. Quando comecei a nadar no clube Grêmio Náutico União, do Rio Grande do Sul, e o pessoal de lá me sugeriu fazer alguns exames para saber se eu estaria apta para nadar no paralímpico. Eu me animei muito depois que conheci a estrutura do esporte paralímpico brasileiro. Digo que sou a pernambucana mais do Rio Grande do Sul que tem. Tenho um carinho grande e muita gratidão pelo clube, pois foi ele que me colocou no esporte paralímpico.
Você já praticava natação convencional desde nova.
Meu irmão foi nadador e eu nadava porque era o único esporte que eu podia fazer que não tinha impacto, já que qualquer pancada que eu leve na cabeça eu posso perder um pouquinho de visão que tenho. Tenho uma sensibilidade muito grande na retina. Eu sempre nadei até para manter o meu físico e era uma forma de eu me colocar à prova. Para mim, a natação sempre foi uma forma de superar os meus medos. Então sempre me mantive nadando, mas a excelência mesmo eu tive quando cheguei no Centro de Treinamento da Seleção Brasileira, em São Paulo. Eu nadava para 1:04, 1:05 no 100m livre quando cheguei. Hoje, estou nadando para 0:59, melhorou muito o meu jeito de nadar.
Na sua trajetória, você parou de nadar por 10 anos por causa de um problema sério na retina. Como foi?
Eu não gosto de falar sobre isso. Eu tive água na retina e fiquei completamente sem enxergar nada. Eu não conseguia nadar, porque eu não confiava que não iria bater em alguma coisa. Foi uma época muito ruim da minha vida, que eu nem gosto de comentar muito. Em outras situações, eu tive água na retina novamente. Na segunda vez, nunca voltou ao normal. É uma coisa que me atrapalha bastante, mas que eu consegui lidar.
E decidiu voltar a nadar, aos 27 anos, já na maratona aquática? Em 2014 você inclusive venceu a categoria Challenge, de 24 a 29 anos, do Desafio Rei e Rainha do Mar.
Voltei a nadar porque eu precisava fazer algum exercício, estava com medo de ganhar muito peso. E voltei nadando em competição estadual. Foi assim que me mantive em um nível competitivo que pudesse trabalhar. Mas quando voltei a nadar na piscina, já foi no grupo que fazia travessias. Conheci o clube Grêmio Náutico União por ser uma potência em águas abertas e fazia travessias na Paraíba, porque Recife não pode nadar no mar por causa de tubarão. O pessoal treinava na piscina, mas me chamava para ir nadar nas travessias. Era uma forma de eu sair e fazer algo diferente. Eu ficava muito em casa, então resolvi viajar para acompanhar a turma. Eu tinha muitos amigos. Era muito bom quando eu terminava a prova para mostrar que eu conseguia.
E já aconteceu algum imprevisto durante uma dessas travessias?
Eu tenho muitas histórias legais. Uma das vezes que eu fui nadar nessas travessias, eu me perdi da pessoa que eu estava acompanhando e ela, de mim. Eu fiquei no mar sem saber nem para que lado era para nadar. Eu levantava a mão e não sentia nenhum toque, nada. Eu já estava pensando, meu Deus, quando uma outra pessoa que era da mesma equipe que eu e me chamou para ir com ela. Eu me juntei com esse rapaz e terminamos a prova. Foi bem emocionante.
Você acabou ficando conhecida como a novata veterana. O que acha desse apelido?
Eu acho o máximo, porque de fato eu entrei fora do tempo. E tudo estava conspirando contra. Cheguei tarde no esporte, em uma classe que é muito competitiva, peguei um processo de treinamento que já estava na metade, que já estava a todo vapor desde 2016. Tudo ia contra. Sou realmente uma novata em um grupo que já está em andamento. Mas, ao mesmo tempo, sou veterana porque já cheguei nadando. Percebo que o sistema é tão bom que me absorveu. Toda a equipe fantástica que conseguiram montar, com uma estrutura mais fantástica ainda, com parte de recuperação, desenvolvimento para se preparar fisicamente, parte de fisioterapia. Conseguiram pegar uma pessoa mais velha, que já nadou, mas que é cheia de vícios, e conseguir mudar quando ela já tem 34 anos. Acho que novata veterana é o melhor nome que podiam me dar.
Sempre sonhou em ser nadadora profissional. Em 2019, conquistou quatro ouros nos Jogos Parapan-Americanos Lima 2019. No Mundial, foram mais dois ouros e uma prata. Qual a sensação dessas conquistas defendendo o seu país?
O meu início no paralímpico já foi treinando profissionalmente, tentando buscar melhorias de biomecânica, tentando melhorar ao máximo o meu nado, visando o nado de uma campeã, de uma atleta que pudesse disputar uma medalha no mundial. Todo esse sentimento foi dia após dia sendo construído e me deu uma vontade cada vez maior. Eles trabalharam muito comigo. Cheguei com um problema sério no ombro, achava que nem iria mais nadar. Eu debutei no Open de Natação, que foi a minha primeira competição e, de cara, já batemos o recorde mundial duas vezes (manhã e tarde) e conquistamos o índice para ir para os Jogos Parapan-Americanos de Lima.
Depois veio o Parapan de Lima.
No Parapan de Lima, eu estava com muitos problemas hormonais. E o CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro) realmente dá a possibilidade de você, como mulher, poder praticar o esporte em pé de igualdade de possibilidades. Eu digo isso porque eles conseguiram me olhar como um organismo feminino. Quando eu comecei a apresentar dificuldades por causa de hormônios, eles não trataram como uma besteira, uma frescura. Pelo contrário, procuraram uma ginecologista do esporte que me avaliou, me passou um nutricionista porque viram que eu estava baixando muito de peso nos treinos. Eles me viram mesmo como mulher e me possibilitaram chegar onde eu cheguei. Mesmo assim ainda nadei bem no Parapan, conquistei quatro medalhas de ouro.
Você ficou emocionada no pódio da sua primeira medalha parapanamericana. Como viver isso?
Lá eu escutei pela primeira vez o hino brasileiro de cima do pódio, nunca tinha vivido aquela emoção na minha vida. Achei que não fosse chorar, porque sou meio seca na hora da preparação para poder aguentar tudo até o fim. Mas quando eu escutei o hino brasileiro, vi que não dava para segurar. Fiquei muito emocionada, aquilo mexeu bastante comigo. Vou levar para a minha vida.
E como foi a sensação de estrear no Mundial Paralímpico de Natação, no mês seguinte, em Londres?
Achei que tinha vivido o maior momento da minha vida quando cheguei no Mundial. Mas percebi que não. Porque é uma outra competição, outro jeito de abordar as disputas, as eliminatórias. No Parapan-Americano, eu ia direto para as finais. No Mundial, não. Lá tinham oita meninas, contando comigo, que classificaram para Tóquio com praticamente o mesmo tempo, tanto que eu venci por 1 centésimo uma prova. Foi uma coisa que eu nunca tinha passado. Teve a experiência de passar por toda a pressão da prova, de esperar prova, de ser classificada, de chegar na final e estar todas as bancas de controle. Isso tudo eu nunca tinha passado. Foi tudo novo para mim.
E no Mundial você voltou a subir no pódio. Primeiro, no segundo lugar nos 100m costas.
A minha primeira prova no mundial foi nos 100m costas. Eu fiquei em segundo lugar. Na verdade, eu cheguei lá com tempo para disputar um terceiro, quarto lugar, porque não era a minha prova de especialidade e tinham competidoras muito boas. Aí um amigo meu foi campeão mundial, mas eu não esperava que ele fosse ganhar, ele baixou muito o tempo e foi bem na hora que eu estava indo para a prova. Ele passou por mim e a gente se abraçou, dei os parabéns a ele e disse que agora iria para a prova muito mais forte. Dito e feito.
E logo no Mundial você competiu pela primeira vez com o tapper (pessoa que auxilia o nadador cego com um bastão para comunicar que a borda da piscina está próxima no momento da chegada). O que aconteceu?
Eu tive problemas porque a luz do teto, que estava me incomodando muito. Tive de nadar sem óculos, que foi algo diferente para mim. Então tive de confiar totalmente na pessoa que foi o meu tapper, porque é como se fosse uma extensão minha. Eu nunca tinha precisado dele. Mas para nadar do jeito que eles querem – sem sair da posição, sem levantar a cabeça, sem chegar um pouquinho mais devagar na dobra – eu preciso do tapper e preciso confiar 100% na pessoa. E eu realmente melhorei o meu tempo, ficamos em segundo lugar. Isso foi uma animação no momento. Na hora que recebi a medalha, disse que aquela era a maior emoção da minha vida. Aí o tapper olhou para mim e falou: ‘Não é, escuta o que estou te falando. Ainda não é’.
Então veio a sua conquista da medalha de ouro nos 50m livre
No dia seguinte, quando cheguei no parque aquático para nadar os 50m livre e fiquei em primeiro por 1 centésimo, o tapper me perguntou qual era a maior emoção da minha vida. Realmente, a maior emoção da minha vida era aquela conquista do ouro. Quando o hino brasileiro começou a tocar, eu só pensava que tinha deixado tudo na piscina, estava realmente muito satisfeita e feliz por ter feito a minha parte. Até então todos tinham feito a parte deles na preparação, me treinando, mas no bloco era eu quem tinha de resolver.
Como foi começar na natação paralímpica em tão alto nível aos 33 anos?
Eu escutei muito que eu já estava muito velha e pensava que meus tempos não seriam melhores do que os de quando eu era nova. E hoje eu nado muito abaixo dos tempos que eu fazia antes. Foi uma satisfação grande por poder provar que eu consegui, mas principalmente por viver aquele momento com os meus técnicos. Isso para tentar explicar um pouco da minha emoção em cima daquele pódio. E quando me disseram que a medalha de ouro do Mundial me daria o passaporte para disputar as Paralimpíadas de Tóquio, nossa, eu lembro que caí pro lado, a ficha não caía. Aquilo só me deu mais vontade de voltar a treinar. Fiquei morrendo de raiva porque recebemos férias, eu queria treinar mais.
Você e a russa Anna Krivshina travam uma disputa à parte na classe S12 da natação paralímpica. Nos 100m costas, ela ficou com o ouro e você com a prata. Nos 100m livre e nos 50m, foi o inverso. A torcida pode se preparar para fortes emoções em também em Tóquio?
Sim, porque ela é uma atleta muito boa também. Ela tem o tempo exatamente igual ao meu. Quando eu competi de manhã na final dos 50m livre, eu sabia que vinha uma prova muito difícil para a final. E aquilo mexeu muito comigo, porque até então eu não tinha tido uma rivalidade desse nível. Sempre foi pelo menos 1 segundo de diferença, em que eu tinha a possibilidade de cometer um erro. Fiquei com pico de ansiedade durante o dia toda vez que eu lembrava que subiria no bloco. Então parei e valorizei todo o meu processo de treinamento e decidi que iria vencer a melhor performance naquele momento e que eu iria dar o meu máximo.
E novamente você precisou do tapper.
Conversei com o tapper na hora e falei que eu podia quebrar a minha mão na chegada, mas pedi para ele me dar uma chegada perfeita. Então ele falou para treinarmos. Fizemos uma vez no aquecimento e eu disse: ‘Pronto, está bom, é desse jeito aí’. Só depois, o tapper me contou que ficou muito nervoso. É que o Marcão não era o meu técnico mesmo. Mas no treino da manhã a minha última braçada encaixou tão certo com ele de tapper que o meu técnico falou para o Marcão fazer de novo na final. Em nenhum momento o Marcão passou insegurança para mim. Quando terminamos a prova, eu não sabia quem tinha vencido. Aí escutei gritarem em português e soube que eu tinha ganhado. Quando eu saí da piscina que o Marcão me disse que foi por 1 centésimo de segundo, eu dei um abraço nele. Tem uma foto nossa desse momento, que eu estava sem acreditar.
Para fechar, qual a importância social que você acredita ter por ser uma atleta paralímpica no Brasil?
Meus resultados foram muito importantes tanto para a divulgação do esporte paralímpico, até para as minhas bandas no Nordeste, e prova que temos condição. Se quisermos, o sistema está aqui para nos dar condição para atingirmos o nosso melhor resultado. Além da importância de ter referências tanto masculinas quanto femininas de medalhistas mundiais e isso motiva muito. Antes começavam mais tarde. Hoje, vemos quantas crianças estão sendo incentivadas a entrar cedo no esporte paralímpico. Os resultados e as formas de como eles estão sendo divulgados estão levando crianças e adolescentes a praticarem, que são o futuro do esporte paralímpico no Brasil e que traz tantos valores para a gente como pessoas e como cidadãos.
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