Meu fornecedor de Queijo Minas lá de perto de casa está louquinho para voltar a vender, porém, ao que parece, tem mais noção do perigo do que a indústria do futebol. Recolheu a banca e decidiu preservar a saúde em tempos de pandemia do novo coronavírus. Acumula prejuízo, claro, mas admite que não está na hora de voltar ao batente.
Enquanto isso, alguns cartolas do mundo inteiro que, obviamente, não entram em campo e sentam-se engomadinhos nas tribunas de honra e camarotes VIP fazem barulho e malabarismos absurdos para tirar seus jogadores da quarentena e colocá-los dentro das quatro linhas a qualquer custo, nem que seja de macacão, máscara e capacete — como se fossem astronautas. Sem um pingo de amor à vida dos atletas e respeito aos familiares.
Querer jogar à força é a maior fraqueza do futebol. Refém das cotas de televisão no mundo inteiro, o esporte mais popular do planeta descobriu que não é sustentável. Muito menos um mundo à parte. Porém, se recusa a calçar as sandálias da humildade e admitir que a crise chegou para todos e provavelmente o futebol não será o mesmo pós-covid 19.
Adaptando um trecho da música Índios do Legião Urbana, “nos deram espelho e vimos um mundo (da bola) doente”. Algumas declarações em meio à pandemia são surreais. O discurso do presidente do Internacional, Marcelo Medeiros, na apresentação do elenco, foi simplesmente um escárnio. “Quem não quiser jogar, que peça demissão”. Logo ele, curado da covid-19 no início da paralisação. Em nota, o dirigente pediu desculpas pelo excesso.
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha; e o CEO da Arena BSB, Richard Dubois, também perderam a noção. O mandatário do Executivo local disse ao chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que estava trazendo o Flamengo para jogar em Brasília e que ambos veriam juntos no Mané Garrincha.
Na quarta-feira passada, Richard Dubois conversou com este blogueiro. Disse que a arena está pronta para receber lives de futebol, referindo-se a jogos com portões fechados, e afirmou que nem mesmo o hospital de campanha instalado no espaço lounge do estádio mais caro da Copa 2014 — 1,7 bilhão — impediria a concessionária de receber a retomada do Campeonato Carioca e, ao mesmo tempo, prestar atendimento aos pacientes. Entendo o discurso empresarial, mas não é o momento.
O jogo de empurra das instituições não dá garantia de saúde aos atores dos espetáculos. O presidente Jair Bolsonaro delira ao exigir a volta do circo para transmitir ao povo a sensação de que a vida está voltando ao normal em meio à confusa política brasileira contra a pandemia. Os ministérios da Saúde e da Economia jogam para o chefe, mas lavam as mãos diante da pressão das federações. As entidades estão desesperadas para evitar que seus estaduais sejam encerrados e os clubes recebam o dinheiro das cotas de televisão.
A CBF dá corda aos filiados nas videoconferências para testar o limite das autoridades, mas puxa quando o calo aperta e volta ao discurso padrão a fim de proteger a própria imagem. Diz que só haverá futebol quando o Ministério da Saúde der o sinal verde. Ao que parece, vai demorar. Nelson Teich está perdido no cargo. Futebol, óbvio, é um dos últimos itens no checklist.
A pressa é inimiga da perfeição e amante da irresponsabilidade, mas há ações e discursos sensatos, claro. Quem diria? A Uefa adiou a Euro para 2021. A Conmebol copiou e colou a ideia. A Copa América também passou para o ano que vem. As ligas da Bélgica, Holanda, França e Escócia foram dadas por encerradas sob uma saraivada de críticas.
Por aqui, Raí tomou a frente no São Paulo e disse que o time não entrará em campo ao classificar a pressa do presidente Jair Bolsonaro para o retorno do futebol como “irresponsável”. É direito dele opinar — e ninguém deve censurá-lo, não é, Caio Ribeiro?
Os jogadores demoraram, mas finalmente se manifestaram. Ignorados nas discussões sobre a volta do futebol, querem ser consultados, ouvidos. Ameaçam até não entrar em campo.
Mas até este movimento é criticado por quem conhece os bastidores. O atacante Rafael Sobis detonou a alienação de alguns jogadores. “Infelizmente, são sempre os mais velhos que se envolvem. Os mais jovens querem Internet, querem vida boa, não sabem nada do que está acontecendo. Muitos não sabem nem a regra do futebol, não sabem por que treinam e para que serve cada tipo de treinamento. As pessoas mais velhas vão saindo do futebol e fica difícil unir todo mundo. Tem gente que não se preocupa mesmo, em todas as profissões. Mas a gente que é mais velho vai tentando ajudar, e vai rezando para que esses mais jovens possam saber pelo que estão lutando”.
O ex-jogador e hoje comentarista Pedrinho também condena a pressa: “As pessoas estão perdendo a noção do que está acontecendo, colocando o futebol como se fosse a coisa mais importante do mundo. Nós dependemos do futebol, mas não podemos ser incoerentes, irresponsáveis. Eu quero que o futebol sobreviva, mas como vou trabalhar com isso se tem pessoas próximas morrendo. Eu perdi um conhecido de 43 anos, um cara super saudável”, disse o comentarista do Grupo Globo.
Quando a onda de paralisações do futebol começou, publiquei aqui no blog o diagnóstico do virologista alemão Jonas Schmidt-Chanasit sobre a situação do futebol. Disse ele: “Não é realista pensar que esta temporada (2019/2020) possa terminar, basta verificar qual é a situação em toda a Europa e ainda aquilo que está para vir. Nesse sentido, não há previsão de que o futebol possa recomeçar. Só no início do próximo ano, no mínimo”, projetou.
Mas o futebol se acha o João Teimoso, aquele brinquedinho de base arredondada que, por mais que seja inclinado, tende a permanecer de pé. Não duvidemos. A bola deve voltar a rola daqui a alguns dias nas principais ligas do mundo e no Brasil. Para limpar a barra, clubes e federações criarão hashtags bonitinhas capazes de causar comoção. Todos acharão engraçadinho. Curtirão, compartilharão. Enquanto o doente futebol estiver nas quatro linhas, o mundo continuará na torcida por outro time: o dos cientistas à caça da vacina!
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