Lusail — Uma decisão como a que acabo de testemunhar aqui no Estádio Icônico de Lusail não se explica nos primeiros minutos nem nas primeiras horas depois da partida. Como diria o lado vencedor da final das finais em 92 anos de Copa do Mundo, “hay que desfrutar”. Inclusive com direito de esposta a quem até pouco dia tripudiava pelas estações de metrô e arredores dos estádios com provocações do tipo “Êta, êta, êta, êta, Messi não tem Copa, quem tem Copa é o Vampeta”. Agora, o melhor jogador do século 21 tem, sim, uma Copa para chamar de sua.
Confesso que esperava um belo jogo. A minha tese tinha como base aquele duelo de quatro anos e meio atrás entre Argentina e França pelas oitavas de final, na Rússia. Foram sete gols. Quatro da trupe de Mbappé e três da turma de Messi. A expectativa era por uma excelente partida, não por um banquete aos alás da bola no meio do deserto do Qatar.
Se houvesse justiça no futebol, alguém deveria ter proposto a divisão da taça pela primeira vez em 92 anos de histórias da Copa do Mundo. O que Mbappé e Messi fizeram é para ecoar na eternidade. Um deles deveria sair campeão da primeira edição do torneio no Oriente Médio e o ungido é Lionel Messi em sua provável despedida do torneio. Possível, pois Messi fala uma coisa agora e daqui a pouco faz outra. Anuncia adeus à seleção depois de perder pênalti na final da Copa América Centenário, em 2016, nos Estados Unidos, e volta não somente para disputar o Mundial na Rússia, mas tentar o tri no Golfo Arábico.
Acaba de conseguir na quinta participação pessoal no torneio com uma exibição antológica aos 35 anos. Suportou bravamente mais de duas horas de jogo. Mais do que isso: fez dois gols. Mais digno de aplausos do que isso somente o esforço hercúleo de Mbappé para levar a França ao bicampeonato. O protótipo de Pelé protagonizou hat-trick em uma final aos 23 anos. Para se ter ideia do que testemunhamos aqui, Messi ultrapassou o Rei do Futebol em coleção de gols na Copa (13 x 12). Por sua vez, o prodígio gaulês igualou (12 x 12). Ativos, ambos estão próximos de igualar o recorde de 16 bolas na rede do alemão Miroslav Klose.
Do ponto de vista tático, havia chamado a atenção no post anterior sobre a necessidade de Lionel Scaloni não abrir mão do iluminado Ángel Di María. Final é com ele. Fez o gol do título contra a Nigéria na final dos Jogos Olímpicos de Pequim-2008. Encerrou o jejum de 28 anos da seleção principal da Argentina na final da Copa América de 2021, no Maracanã, contra o Brasil. Brilhou na Finalíssima contra a Itália ao marcar o segundo gol nos 3 x 0.
Ele não decepcionou ao entrar aberto na esquerda em mais uma partida na qual Scaloni armou a Argentina de acordo com as deficiências do adversário. Explorou a debilidade de Koundé, atraiu Dembélé para auxiliar o lateral e conseguiu um pênalti discutível. Messi bateu e abriu o placar. Depois, aproveitou passe dentro da área e finalizou com a frieza e a precisão de quem coloca uma bola na caçapa com o taco de sinuca devidamente lixado.
Assim como no triunfo diante da Holanda, a Argentina aparentou cansaço na etapa final, quando entrou em cena um ousado Didier Deschamps. Depois de sacar Giroud, o vice-artilheiro do time, no primeiro tempo, ele também abriu mão de Griezmann, o principal articulador da França. Saiu do 4-2-3-1 para o 4-2-4 e passou a sufocar a Argentina na reta final do primeiro tempo com um quarteto de garotos vintões formado por Mbappé, Thuram, Mouani e Coman, o mais velho com 26. Otamendi, o zagueiro violento e trapalhão que fazia boa Copa até então despertou o gigante ao cometer um pênalti infantil.
Era hora do show de Mbappé. Focado, empatou a partida. Emiliano Martínez chegou a tocar a bola no canto direito. Depois, iniciou uma tabela pelo alto, recebeu a bola de volta e finalizou, como diria o técnico do Palmeiras Abel Ferreira, com a cabeça fria e o coração quente. Tínhamos novamente um jogo no Estádio Icônico de Lusail.
A prorrogação e a decisão por pênaltis foram o roteiro final para que algum produtor transforme a final das finais em um longa-metragem tão bom ou melhor do que o Milagre de Berna, sobre a decisão de 1954. Quando Messi fez o suficiente para a bola ultrapassar a linha do gol e partir para comemorar o que aparentava ser o gol do título, o confronto parecia decidido outra vez. Só que não. Montiel deu motivo para Mbappé empatar e ele outra vez provou ao mundo porque briga horrores no PSG para ser o cobrador oficial de pênalti do clube francês. Converteu novamente deslocando Martínez.
Quem já admitia a terceira final de Copa do Mundo decidida nos pênaltis quase viu Mouani virar herói aos sair na cara do gol, encomendar o gol do bicampeonato consecutivo da França e e ver las manos, ou melhor, los pies de dios entrarem ação. Martínez protagonizou, talvez, a maior defesa da história das Copas. Mais do que aquela de 1970 na cabeçada de Pelé contra o goleiro inglês Gordon Banks. Milagre de quem estava pronto para ser o cara.
E foi. Intimidador, Dibu Martínez catimbau nas cobranças. Pegou um. Viu outro ir para fora. Testemunhou o deboche de Messi em uma cobrança ao estilo Maradona na Copa de 1990 contra a extinta União Soviética e esperou Montiel, o vilão do pênalti cometido na prorrogação, virar herói ao acertar a cobrança do tricampeonato da Argentina. Chegava ao fim a sequência de quatro títulos consecutivos da Europa. O jejum de 36 anos de uma das potências do nosso continente. O tabu sul-americano. E aquela musiquinha que torcedor brasileiro adorava cantar assim: “Êta, êta, êta, êta, Messi não tem Copa, quem tem Copa é o Vampeta”. A canção está devidamente aposentada pelo melhor jogador do século 21.
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