Um dia, famílias se despediram de profissionais que embarcaram no voo LaMia fretado pela Chapecoense. Eles não chegaram ao destino devido a uma série de irregularidades e irresponsabilidades que culminaram no acidente aéreo, em Rionegro. Um dia, pais e mães dormiram se despedindo de adolescentes que moravam no Ninho do Urubu. Acordaram sabendo que 10 deles estavam mortos devido a um incêndio em parte do Centro de Treinamento do Flamengo, em Vargem Grande.
Os episódios são diferentes, mas há coincidências nas tragédias de 2016 e 2019. O histórico de voos fretados da LaMia e os recorrentes alertas de irregularidades no Ninho do Urubu apontaram que ambas poderiam ter sido evitadas. Os desdobramentos dos acidentes são um trailer terrível em meio à pressa pela volta do futebol no Brasil: jogo de empurra dos cartolas, fuga da responsabilidade, indiferença e até mesmo descaso com o sofrimento das famílias numa incansável batalha por indenizações.
As histórias tristes servem de alerta em tempos de pressa pela volta do futebol. Os jogadores não estão imunes ao novo coronavírus. A covid-19 também mata atletas, mas o presidente Jair Bolsonaro quer vê-los de volta aos gramados. Provavelmente baseado naquele papo de que o histórico de atleta dele o blindou da contaminação. Pois bem. Certamente, ele será o primeiro a tirar o corpo fora das divididas com as famílias em caso de óbitos no mundo da bola causados pela doença.
Parte da cartolagem — é injusto generalizar — consegue ser pior do que políticos. Trama a volta do futebol arbitrariamente na surdina, às escondidas, sem dar a mínima para a opinião das vidas que estarão em jogo dentro e fora das quatro linhas. Em frente às câmeras, porém, fazem discursos rebuscados, politicamente corretos em defesa da continuidade da paralisação.
As tragédias da Chapecoense, do Ninho do Urubu e outras pelo Brasil advertem: é preciso valorizar a própria vida, a família, antes de topar a aventura de pisar no gramado em nome do presidente da República, dos cartolas ou seja lá quem for.
Lamento que a opinião dos jogadores esteja sufocada. A falta de união da classe pelo maior patrimônio de um atleta: a saúde. Em último caso, se toparem aderir à insensatez dos patrões, eles devem revisar contratos, atualizá-los, observar com lupa cada cláusula, conferir valor dos seguros e demais direitos atrelados aos acordos, proteger as famílias juridicamente. Do contrário, arriscam vê-los entrar no time dos parentes que travam batalhas inglórias por indenizações contra departamentos jurídicos de clubes e seguradoras. Que os episódios da Chapecoense e do Ninho do Urubu sirvam de alerta contra sofrimentos que podem, sim, ser evitados. Talvez, passageiros da LaMia e hóspedes do Ninho do Urubu não tivessem noção do perigo a que estavam expostos. A pandemia é globalizada. São mais de 285 mil mortes no mundo, 4,1 milhão de contaminados. No Brasil, — 11 mil óbitos e 169 mil testes positivos.
O acidente da LaMia tem três anos. Locatária da aeronave, a Chapecoense responde a 28 ações judiciais, entre trabalhistas e cíveis. Até o momento, são 45 acordos. O clube foi acionado 56 vezes na Justiça desde a tragédia, sendo 38 ações trabalhistas de familiares de jogadores e outras profissionais que trabalhavam para a Chapecoense ou eram prestadores de serviço. Há, ainda, 18 ações cíveis de parentes de vítimas que não tinham vínculo com o clube, como diretores, jornalistas e convidados.
A tragédia do Ninho do Urubu faz 15 meses. Segundo balanço publicado em 8 de maio no blog do colega Mauro Cezar Pereira no UOL, três famílias e meia finalizaram acordo com o Flamengo. Um dos meninos era filho de um casal separado. O pai aceitou a proposta rubro-negra. A mãe discorda e segue firme na disputa judicial.
Em 2004, o zagueiro Serginho do São Caetano morreu dentro do gramado do Morumbi numa partida contra o São Paulo pelo Campeonato Brasileiro. A viúva do jogador esperou 10 anos para receber a indenização das seguradoras. Mesmo assim, uma delas conseguiu embargar o pagamento alegando que o jogador era ciente de que tinha cardiopatia. Logo, conhecedor do risco. Os jogadores conhecem o risco da pandemia da covid-19.
A queda de braço entre a viúva do atacante Dener, Luciana Gabino, com o Vasco, por exemplo, durou 21 anos. O atacante Dener morreu em 1994 num acidente automobilístico na Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio. O caso teve solução em 2015. Luciana aceitou reduzir o valor integral da dívida e dividiu o montante em nove vezes. A indenização assinada em 2007 previa o pagamento de R$ 5 milhões para ela e os três filhos de Dener.
A dívida rolou. Com multas por atraso de pagamento e juros de correção do valor original do espólio, a dívida ainda girava em torno de R$ 1 milhão. Pelo acordo assinado à época, o Vasco pagaria 85% do valor — R$ 3,2 milhões — por meio de ato trabalhista no Tribunal Regional do Trabalho do Rio, mais os 15% restantes — R$ 1,8 milhão — em 36 parcelas mensais de R$ 50 mil. O último pagamento deveria ter sido feito em setembro de 2010. Tristes lições para que os jogadores não tomem bola nas costas. Como escrevi outro dia aqui no blog, a pressa é inimiga da perfeição e amante da irresponsabilidade.
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