Pele e Bento Pelé e Bento XVI: encontro entre o Rei e o papa, em 2005, em Colônia. Foto: Foto: Arturo Mari/AFP Pelé e Bento XVI: encontro entre o Rei e o papa, em 2005, em Colônia. Foto: Foto: Arturo Mari/AFP

“O jogo e a vida”: artigo sobre a Copa do Mundo é um dos legados do papa Bento XVI para o futebol

Publicado em Esporte

Apaixonados por futebol, os últimos dois papas conseguiram uma raridade na relação com o esporte mais popular do mundo durante ou depois do “mandato”. Joseph Aloisius Ratzinger, emérito Bento XVI, que morreu neste sábado, aos 95 anos, viu a Alemanha conquistar o tetracampeonato um ano depois de renunciar o pontificado. A conquista, inclusive, foi no Brasil contra o país de seu sucessor, a Argentina, de Jorge Mario Bergoglio. Bento XVI teria preferido dormir na hora da decisão a sofrer pela seleção de Joachim Lӧw e testemunhar o gol de Mario Gӧtze na prorrogação. O papa Francisco teve as preces ouvidas por Deus e foi recompensado neste fim de ano com o tricampeonato alviceleste, no Catar, encerrando 36 anos de jejum.

 

Assim como o antecessor, o ex-goleiro polonês João Paulo II, Bento XVI jogou futebol. Contava a bola e as artes, especificamente o teatro, contribuíram para a formação moral dele.  Era apontado, na Alemanha, como torcedor do Bayern de Munique, e gostava de escrever uma resenha sobre Copa do Mundo. Foi assim, por exemplo, em 1985, antes da edição no México.

 

O escriba publicou um artigo sobre o principal torneio de futebol do planeta. “Nenhum outro evento na terra pode ter um efeito tão vasto, o que mostra que este evento esportivo toca algum elemento primordial da humanidade e nos perguntamos no que se baseia todo esse poder de um jogo. Nesse sentido, o jogo seria uma espécie de tentativa de retorno ao paraíso”, filosofou no artigo “O jogo e a vida: sobre o Campeonato Mundial de Futebol”.

 

O texto do então arcebispo de Munique fez parte de uma coletânea publicada no livro Such, was droben ist (Busquem as coisas do Alto).  Aquela era a resposta de Ratzinger a quem insistia em questioná-lo sobre por que o futebol é praticamente um religião. O artigo foi publicado depois no site do jornal italiano Tempi, reproduzido no fim deste post.

 

Na resposta, Bento XVI fala da relevância do esporte para as crianças, de disciplina, treino, domínio próprio, harmonia, união entre os jogadores por um objetivo comum, sucesso e insucesso e que o jogo transcende a vida cotidiana. O mundo deu voltas e ele era o papa na Copa do Mundo de 2006, justamente no país dele, a Alemanha. Houve até encontro com o presidente do Comitê Organizado daquela edição, o craque Franz Beckenbauer, de quem recebeu uma bandeira comemorativa alusiva ao Mundial e resenhou sobre futebol com o Kaiser.

 

No pontificado de Bento XVI, nasceu a seleção nacional do Vaticano – não filiada à Fifa. O badalado italiano Giovanni Trapattoni foi nomeado técnico da esquadra formada por cardeais cidadãos do Estado com área inferior a 1 quilômetro quadrado. O treinador escolheu a dedo destaques da Clericus Cup, a principal competição interna de futebol entre os seminaristas.

 

Artigo de Bento XVI publicado em 1985, um ano antes da Copa do México, na coletânea Such, was droben ist (Busquem as coisas do Alto), reproduzida na imprensa pelo jornal italiano Tempi em um espaço denominado Reza Matinal.

 

Publicamos uma reflexão sobre o futebol datada de 1985, que traz a assinatura de um desavisado entusiasta do esporte: o então cardeal Joseph Ratzinger. O texto, reunido no livro Procure as coisas lá em cima , foi escrito pouco antes do Mundial de 1986, realizado no México, e parte de uma pergunta muito elementar:

 

Por que esse esporte consegue envolver tanta gente? 

 

Joseph Aloisius Ratzinger, então arcebispo de Munique (Alemanha)

 

Regularmente a cada quatro anos o campeonato mundial de futebol revela-se um evento que fascina centenas de milhões de pessoas. Nenhum outro evento na terra pode ter um efeito tão vasto, o que mostra que este evento esportivo toca algum elemento primordial da humanidade e nos perguntamos no que se baseia todo esse poder de um jogo. O pessimista dirá que é como na Roma antiga.

 

A palavra de ordem das massas era: panem et circenses, pão e circo. Pão e diversão seriam, portanto, os conteúdos vitais de uma sociedade decadente que não tem outros objetivos maiores. Mas mesmo que essa explicação fosse aceita, não seria absolutamente suficiente. Devemos nos perguntar novamente: qual é o encanto de um jogo que assume a mesma importância que o pão? Poder-se-ia responder, referindo-se novamente à Roma antiga, que o pedido de pão e caça era na realidade a expressão do desejo de uma vida no paraíso, uma vida de saciedade sem preocupações e uma liberdade plena. Porque é isso que, em última análise, significa brincar: uma ação totalmente livre, sem propósito e sem constrangimento, que ao mesmo tempo envolve e ocupa todas as forças do homem.

 

Obriga o homem a impor uma disciplina para obter o autodomínio por meio do treinamento; com maestria, superioridade e com superioridade, liberdade. Também lhe ensina sobretudo uma harmonia disciplinada: como jogo de equipa obriga à inclusão do indivíduo na equipa. Une os jogadores com um objetivo comum; o sucesso e o fracasso de cada indivíduo residem no sucesso e no fracasso do todo.

 

Além disso, ensina uma rivalidade leal, onde a regra comum, à qual se submete, continua sendo o elemento que liga e une em oposição. Por fim, a liberdade do jogo, se bem jogado, anula a seriedade da rivalidade. Ao presenciá-lo, os homens se identificam com o jogo e com os jogadores e, portanto, participam pessoalmente da harmonia e da rivalidade, da seriedade e da liberdade: os jogadores tornam-se um símbolo de suas próprias vidas; o que, por sua vez, os afeta: eles sabem que os homens se representam neles e se sentem confirmados. É claro que tudo isso pode ser contaminado por um espírito de negócios que sujeita tudo à seriedade sombria do dinheiro, transforma o jogo de aposta em indústria e cria um mundo fictício de dimensões assustadoras.

 

Talvez, refletindo sobre estas coisas, pudéssemos aprender a viver novamente do jogo, porque nele se evidencia algo de fundamental: o homem não vive só de pão, o mundo do pão é apenas o prelúdio da verdadeira humanidade, do mundo da liberdade. No entanto, a liberdade se alimenta da regra, da disciplina, que ensina a harmonia e a rivalidade leal, a independência do sucesso externo e da arbitrariedade, e assim se torna verdadeiramente livre. O jogo, uma vida. Se formos mais fundo, o fenômeno de um mundo apaixonado por futebol pode nos dar mais do que apenas um pouco de entretenimento.

 

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