Orlando City Dono do Orlando City teve a ideia da bolha no MLS is Back, copiada pela NBA. Foto: Arquivo Pessoal Dono do Orlando City teve a ideia da bolha no MLS is Back, copiada pela NBA. Foto: Arquivo Pessoal

Entrevista: Flávio Augusto | Um bate-papo com o proprietário do Orlando City

Publicado em Esporte

Há quem conte os dias para o adeus a 2020. Não é o caso do Orlando City. Prestes a comemorar seis anos, o clube da Major League Soccer lançado em 19 de novembro de 2013 curte ano inovador e abençoado. Em parceira com a Disney, elaborou a bolha que permitiu a retomada segura do futebol profissional nos Estados Unidos em meio à pandemia no torneio MLS is Back. O mentor da ideia é o carioca Flávio Augusto da Silva. Aos 48 anos, o empresário fundador da Wise Up é um dos dois proprietários estrangeiros de equipes da MLS. Avaliado em R$ 2,2 bilhões, o Orlado City influenciou até a NBA. A liga de basquete copiou a bolha da MLS. Em entrevista ao Blog, o empresário festeja os resultados em campo. Foi vice do MLS is Back. Tem a terceira melhor campanha da MLS. Flamenguista, Flávio fala sobre a amizade com Jorge Jesus, elogia o ex-técnico rubro-negro Domènec Torrent e critica a estrutura política do futebol brasileiro. Para ele, a criação de uma liga é utopia e o país segue sendo nada mais que celeiro de craques.

 

Orlando City criou a bolha do torneio MLS is Back. A NBA copiou e deu certo. Como foi isso?
Marcou a nossa volta ao campo. O Orlando criou o projeto da bolha. Negociou com a Disney e com a ESPN World Wide Sports, onde foi o evento. Criamos a logística. A gente apresentou para a liga e validou. A NBA copiou no mesmo lugar. Fizemos excelente torneio (MLS is Back) e perdemos a final para o Portland. A curva de construção e estruturação de um time é longa, mas, no quinto ano, chegamos a uma final”. Com a quinta melhor campanha geral na temporada regular, quarta na Conferência Leste, o Orlando City terá pela frente o New York City nos playoffs.

 

Os protocolos da MLS e da NBA são sucesso. Por quê?
Não houve caso no Orlando. Nashville e Dallas tiveram no MLS is Back e nem participaram. Foram eliminados. A gente tem um protocolo muito rígido. Eu não posso falar pessoalmente com jogador, técnico, não posso ir ao centro de treinamento. O que acontece no Brasil é que o cara quer ir lá e vai. Aí vai dar pau. Eu só não posso como não quero. A regra quem faz somos nós. E seguimos. Somos donos da liga. Se não tiver um protocolo sério, o torneio não acontece. Nosso time não quer comprometer o ano inteiro por causa de bobagem. No estádio, temos 20 câmeras. Cada um no seu lugar. As famílias aglomeradas e com espaço entre elas.

 

O protocolo do Brasileirão é bom?
Não conheço detalhes e não sei se estão cumprindo. Atrevo-me a dizer, sem saber, conhecendo brasileiro, que o protocolo é razoável para bom e as pessoas dão jeitinho, não cumprem. Não acho que é um problema de protocolo, embora eu ache que não é tão rigoroso como deveria.

 

A segurança jurídica pesou para investir nos EUA e não no Brasil?
No Brasil, nem se eu quisesse dá. Não posso ser dono do Flamengo. Não tem como. Não existe investir. Sou patrocinador que troco visibilidade pelo patrocínio; ou eu sou diretor; não tem o dono do clube. Entendi que aqui é um modelo que me dá segurança jurídica. Sou dono não somente do clube, mas da MLS. Não tem a figura da federação desalinhada, da CBF desalinhada. Somos uma coisa só. A gente tinha a NFL, NBA e a MLB como referências de ligas que deram certo nos EUA. Estou há seis anos na MLS. É o quinto ano jogando. Há modelo de empresa, de igualdade.

 

“Atrevo-me a ter dizer, conhecendo brasileiro, que o protocolo (do Brasileirão) é razoável para bom e as pessoas dão jetinho, não cumprem”

 

O Brasil pode construir uma liga?
A coisa está organizada no Brasil para ser de outra forma. Não tem ninguém interessado em mudar isso. Para montar a liga, você precisa ter as pessoas querendo, com interesses alinhados a isso. Hoje, o futebol no Brasil é política. As minhas decisões no Orlando não estão relacionadas ao fato de eu ser eleito. Se der qualquer variável e o clube se endividar, quem paga sou eu. O diretor (no Brasil) não paga nada. A bomba explode nas mãos do outro. É política. O cara trabalha para ser reeleito. Não há plataforma administrativa, objetiva. O Flamengo rompeu com isso na gestão do Bandeira (de Mello), agora com o Landim, também, e começou a ter sucesso no futebol. Aparece um cara legal e faz, mas daqui a pouco surge outro e destrói.

 

Você toparia ajudar a fundar uma liga no Brasil, ser o CEO…
Trabalhar como executivo não teria interesse. Ajudar a pensar, sim. Mas ajudar quem? Não tem quem queira ajuda. Está tudo bom. Não tem jeito. Ou é privado ou é político. O privado tem um dono. Quem é o dono? O cara que paga a conta. Ou é o público, ninguém paga a conta. Tem um certo estigma de que o privado vai dar lucro e outro que tem a corrupção. Vamos olhar para a Premier League: a maioria dos clubes é privado. A liga inglesa é o melhor exemplo. É uma mudança muito mais profunda. O Brasil é ótimo celeiro de talentos. Ficamos por aí por enquanto.

 

Kaká deixou legado no Orlando?
Ficou três temporadas. Conduta irretocável. Participou do nascimento do clube. Em cinco anos. Temos dois centros de treinamento, 12 campos oficiais, estádio próprio. A gente é um bebê grandão.

 

A MLS também é grata a ele…
O Kaká teve a importância, também, de botar a liga no mapa mundial. Isso colaborou muito para o crescimento econômico da liga no sentido de atrairmos mais atenção. Desde então, além de Kaká, Pirlo, Villa, Ibrahimovic e outros passaram por aqui.

 

“Quem aprende a vender nunca mais arruma emprego. Deixa de vender a hora dele para vender o que quiser. O patrão dele vira ele. Sou muito forte nessas convicções”

 

Não falta um técnico brasileiro?
Tivemos uma influência inglesa no clube. Esse ciclo levou três anos. Acabou e contratamos um diretor de futebol brasileiro (Luiz Muzzi). Ele é o chefe do treinador. Fizemos a opção de trazer o Oscar Pareja, um colombiano que havia sido campeão e trabalhado com o Muzzi no FC Dallas. Oscar é excepcional. Pode treinar um time brasileiro, europeu. Poucos pegam o que tem e melhoram. É o caso do Domènec Torrent. Pegou o New York City e melhorou.

 

Por falar no Dome, como o avalia?
Acompanho o trabalho do técnico do Flamengo desde a Espanha. É um bom treinador, mas não é provado e aprovado como é o Jorge Jesus. Eu morava em Portugal quando ele ganhou tudo no Benfica. Só não ganhou a final na Copa da Uefa contra o Sevilla (em 2014). Eu estava lá, vi o jogo.

 

Fala sobre a amizade com Jesus…
Viajei com a delegação do Benfica (para a final da Copa Uefa, em 2014). Fomos (para Turim, na Itália) no mesmo avião fretado pelo clube. Perdemos para o Sevilla. Na hora de ir embora, jogadores, comissão técnica, patrocinadores, diretoria e convidados, eu estava junto, dormimos nas cadeiras do aeroporto. O avião deu problema. Foi um pesadelo. Essa é a minha experiência com o Jesus. Ele é provado e aprovado. Domènec Torrent é bom, mas vamos ver se aguenta a torcida do Flamengo, que cobra (o treinador foi demitido no último dia 8/11 após ser goleado pelo Atlético-MG, no Mineirão, pelo Brasileirão, e Rogério Ceni assumiu o cargo).

A torcida do Fla inclui você…
Sou flamenguista. Fui ao Catar (para o Mundial). Visitei o centro de treinamento. Perdemos, mas o passeio foi ótimo. A década de 1980 me fez torcer pelo Flamengo. Vi Zico jogar com aquele time campeão mundial (em 1981). Ouvia o time jogar no rádio de pilha. Não ia muito ao Maracanã. Morava longe, na periferia, em Jabour, entre Bangu e Santíssimo. Era muito distante, barra pesada.

 

“Para montar liga no Brasil, precisa ter pessoas com interesses alinhados. O futebol no Brasil é política. Se o Orlando City se endividar, quem paga sou eu. Diretor, no Brasil, não paga nada”

Começou a empreender em Jabour?
Era o contrário. Eu tinha que sair do bairro para o centro do Rio. Era uma jornada de cinco horas por dia entre ida e volta usando transporte público. Era muito duro. Hoje, trabalho de casa, há 11 anos. Pego trânsito de um minuto e meio do quarto ao escritório para compensar. Decidi morar em Orlando. Vou ao Brasil uma vez por mês. São oito horas para ir e oito para voltar. Isso dava três dias de trânsito. Morar nos EUA e ir ao Brasil é mais perto do que ir todo dia de onde eu morava para o centro do Rio.

 

Quais foram as lições de Jabour?
Eu diria que a questão da batalha, do jogo de cintura. O brasileiro é um guerreiro quando ele entende o seu valor, aprende, principalmente, a vender. Eu sempre falo de vender porque o cara que aprende a vender nunca mais arruma um emprego. Ele vai deixar de vender a hora dele para vender o que ele quiser. O patrão dele vira ele. Sou muito forte nessas convicções. Aprender a vender me deu ferramentas para começar a empreender. Eu não tinha dinheiro para abrir um negócio, mas sabia vender. Quem vende traz dinheiro para dentro. Arrumei um dinheirinho para fazer a primeira montagem do negócio, mas depois tinha que vender. Se não vendesse a gente morreria. Era a parte que eu sabia fazer. A gente conseguiu começar, crescemos e a Wise Up virou o que virou, com mais de 400 escolas.

Foi da Wise Up ao Orlando City…
Não precisei nem trocar. Fiquei com os dois. Primeiro, eu vendi (a Wise Up), comprei o clube e depois recomprei a escola. O clube apareceu porque eu estava morando aqui (em Orlando). Meu filho jogava e comecei a observar um interesse muito grande do americano pelo futebol. Os EUA viviam um fenômeno. Pesquisei sobre a liga. Em 2012, havia mais público na MLS do que no Brasileirão. Investi nisso.

 

Planeja vender o Orlando City?
Sempre falo que o ápice do sucesso de um empreendedor é quando ele vende o negócio dele. As pessoas acham que vendeu porque alguma coisa deu errado. É o contrário. Vendeu porque deu tão certo que alguém quis comprar. É uma evolução natural de um empreendedor. É uma filosofia que eu tenho sobre negócios, mas não significa que eu tenha data para vender um negócio X ou Y. Quando vendi a Wise Up, estava no auge dela. Alguém pagou quase R$ 1 bilhão. Se estivesse mal, não valeria isso tudo.

 

“Sou da periferia. Falar para mim que pegar cinco horas de ônibus ida e volta (de Jabour ao centro Rio), chegar na empresa para trabalhar ao lado do colega que pegou metrô no ar-condicionado e, em 10 minutos, está lá, descansado, e eu no bagaço, está tudo bem, não está tudo bem! Não é culpa dele nem minha. Mas justo, não”

 

Idioma trava técnico brasileiro?
Treinador brasileiro tem que parar com essa história de que não quer falar inglês. Atrapalha. Os treinadores portugueses, como José Mourinho, falam inglês. O Dom fala inglês e português.

O que esperar da Copa-2026?
Oitenta por cento da Copa será nos EUA e 20% dividido entre Canadá e México. Até lá, o futebol e o público nos EUA explodem. De 2020 a 2026, a curva vai se acentuar. Um novo boom.

Aprovaria uma Libertadores das Américas do Sul, Norte e Central?
Sou contra. Existe uma distância geográfica entre determinados times da MLS e outros da America do Sul maior do que uma viagem de São Paulo a Londres. Imagina um jogo entre Vancouver (Canadá) e Rosário (Argentina). É logisticamente inviável. A ideia seria legal numa realidade utópica. Na prática, é inviável.

 

O que acha do Black Lives Matter?
Os EUA têm um problema até mais profundos do que no Brasil em relação ao racismo. Aqui, vivemos em um país em que houve segregação. No Brasil, mesmo com a escravidão, não tivemos segregação. Quando a gente fala em escravidão, pensamos em um século distante. Aqui essas marcas são bem profundas. Sempre que há uma situação crítica, isso vem a tona muito forte. Óbvio que isso é usado no Fla-Flu político, guerra de poder, polarização.

 

Como lidam com o movimento?
Nós, proprietários, apoiamos a iniciativa dos jogadores. Demos liberdade, espaço nos sites, manifestação nos jogos, camisa. Total apoio. Recebemos jogadores na última reunião dos donos. Eles propuseram outras ações e aprovamos. Vejo de fora manifestação legítima. Os atletas americanos negros dominam o esporte.

 

Considera que há politização?
Não é político do ponto de vista do Fla-Flu. É do ponto de vista da manifestação social, no que chamam de basta. Sou de periferia. Falar que eu pegar cinco horas de ônibus (de Jabour ao centro do Rio), chegar ao trabalho, sentar ao lado de um colega que pegou metrô no ar-condicionado e, em 10 minutos, estava descansado, e eu no bagaço, está tudo bem, não está! Não é culpa dele nem minha. Mas justo, não é. Agora, transformar isso em Fla-Flu, não gosto. Você não verá jogador nosso se ajoelhando no hino dos EUA. É falta de respeito ao país do qual alguns de nós não fazemos parte.

 

 

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