O primeiro ato populista do presidente Jair Bolsonaro foi “invadir” a festa do título do Palmeiras no Brasileirão 2018. Pisou no gramado do Allianz Parque, entregou o troféu ao clube paulista, celebrou a conquista alviverde como se fizesse parte dela e até ergueu a taça sem ter marcado um gol sequer na campanha do time comandado por Luiz Felipe Scolari. Era apenas um dos primeiros capítulos da perigosa aproximação no novo chefe de Estado com a cartolagem, times de futebol e até a Seleção Brasileira na conquista da Copa América 2019. Um anúncio de que, assim como Luiz Inácio Lula da Silva, usaria o esporte, principalmente o futebol, como propaganda.
Usa e abusa. Bolsonaro se diz palmeirense. Porém, no ano passado, vestiu mais de uma vez a camisa do Flamengo, principal concorrente econômico e esportivo do clube de Palestra Itália. Não teve constrangimento de virar a casaca quando lhe convém. Usa a camisa rubro-negra, mas falou em torcer pelo Botafogo numa suposta vinda do Glorioso ao Distrito Federal para um jogo no Mané Garrincha. Em novembro do ano passado, esteve na Vila Belmiro ao lado do ministro da Justiça, o santista André Mendonça, então chefe da Procuradoria Geral da República, fazendo média com a torcida do Peixe no clássico contra o São Paulo.
Convidou a cúpula do Flamengo mais de uma vez para uma visitinha ao Palácio do Planalto. Fez até propaganda gratuita do clube ao entregar o “manto” ao presidente da China, Xi Jinping. Há duas semanas, levou os mandatário de Flamengo e Vasco — Rodolfo Landim e Alexandre Campello — à sede do governo para tratar da volta do futebol em plena pandemia. Joga para a galera ao defender a retomada dos campeonatos em meio ao número crescente de óbitos e contaminações por covid-19. Neste domingo, o Vasco informou que 16 jogadores testaram positivo.
Ao afagar cartolas, Bolsonaro nada mais quer do que atrair a simpatia dos seguidores de gigantes do futebol brasileiro. Ao que parece, parou no tempo. A maior parte dos torcedores entende que o amor à camisa acabou. O ídolo de hoje pode ser apresentado pelo rival amanhã. Portanto, para muitos deles, é indiferente o presidente da República vestir a camisa.
Bolsonaro deve saber disso, mas insiste em forçar a barra. No entanto, sabe onde pisa. Em nenhum momento tentou aproximação, por exemplo, com o Corinthians. Fundada em 1969, a Gaviões da Fiel tem seu papel político no antagonismo à gestão do presidente Wadih Helu de 1961 a 1971, que tinha trânsito fácil pelos partidos apoiadores do Regime Militar e tentou impedir com várias represálias a criação da Gaviões da Fiel. Mais à frente, a uniformizada comprou a briga do país no movimento pelas Diretas Já. Sim, parte dessa torcida também calou-se ao receber de presente um estádio construído com dinheiro público na gestão de seu ilustre torcedor Lula. A arena erguida para a Copa 2014 não está paga — e dificilmente será.
Há quem generalize e criminalize torcidas organizadas ou uniformizadas, como queira, sem conhecer suas origens históricas. Sim, parte de gente infiltrada nelas e em vários segmentos da sociedade é violenta. A construção dessa imagem tem seu preço, cobra caro, óbvio. Mas este texto trata sobre o direito de qualquer cidadão ao engajamento político. Entre erros e acertos históricos, a Gaviões da Fiel mais uma vez escolhe um lado na grave crise política do país. Foi às ruas neste domingo pedir respeito à democracia. Discurso coerente com a bandeira erguida na Democracia Corintiana e na campanha das Diretas Já. Em tempos de intolerância e estádios com torcida única em clássicos paulistas, uniu-se a facções dos arquirrivais Palmeiras, São Paulo e Santos no ato. Parte das torcidas do Flamengo e do Atlético-MG também se mobilizou.
Se o plano de Bolsonaro era ter a bola aos seus pés, a resposta de alguns torcedores neste domingo serve de alerta. Os cartolas podem até tê-los “vendido” ao presidente da República como massa de manobra ao estreitarem relações com o Planalto. Entretanto, os protestos mostram o contrário. Assim como não existe mais time bobo, não há mais povo bobo no futebol. A “massa” entende que não se “compra” apoio vestindo a camisa do time dela. Sabe que respeito se conquista com o cumprimento da democracia, sem ataques ou ameaças a ela.
O presidente da República deve ter sido surpreendido neste domingo pelos protestos da torcida, mas o futebol vem mandando recados a ele desde a Copa América do ano passado, no Brasil. Bolsonaro era o único chefe de Estado presente no Morumbi na abertura do principal torneio de seleções do continente. Recebeu vaias na semifinal do clássico contra a Argentina ao perambular pelo gramado do Mineirão no intervalo. Posou de campeão ao lado de jogadores-apoiadores da Seleção no título contra o Peru, mas viu Tite e parte da torcida reprovarem a presença dele em campo na festa do Maracanã.
Que Bolsonaro não se engane. Aquele velho discurso do “onde a arena vai mal, mais um time no Nacional”, quando a ditadura contornava crises do partido político do regime aumentando o número de clubes participantes do Brasileirão, é passado. Portanto, não é vestindo a camisa do clube A, B, C ou até mesmo da Seleção que se conquista simpatia, respeito. Certo ou por linhas tortas, o recado democrático foi dado pelas torcidas no histórico 31 de maio de 2020: Jair Bolsonaro não tem a bola aos seus pés. Ao menos a de futebol.
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