POR MAURÍCIO DE FIGUEIREDO CORRÊA DA VEIGA*
Especial para o blog Drible de Corpo
Muito se comentou acerca de uma decisão proferida pelo TRT da 2ª Região, veiculada em maio de 2020, na qual o São Paulo Futebol Clube teria sido condenado a pagar adicional noturno ao atleta Maicon Thiago Pereira de Souza pelas partidas de futebol disputadas após as 22h.
Tendo em vista que o processo tramita em Segredo de Justiça, não foi possível consultar os fundamentos da decisão, razão pela qual o presente artigo não tratará do caso concreto, mas sim acerca da atividade do atleta profissional e os motivos pelos quais tal rubrica não é devida.
O contrato de trabalho desportivo “oferece as suficientes características, para reconhecer-se que estamos ante um texto de obrigações perfeitamente diferenciado e que não se amolda, em pauta alguma, dentro da codificação do direito trabalhista.” Esta afirmação foi feita por João Lyra Filho , considerado o patrono do Direito Desportivo no Brasil.
Com efeito, o contrato desportivo tem características especiais que, de fato, não se enquadram na CLT. É a Lei Geral do Desporto que irá reger a atividade do atleta profissional. Somente na hipótese de omissão e. mesmo assim, desde que não haja incompatibilidade com os princípios do desporto, é que a legislação trabalhista será aplicada, tendo em vista que é esta a interpretação que se extrai do art. 28, parágrafo 4º da Lei Pelé.
Ninguém duvida que o atleta está submetido a uma rotina estressante de trabalho com atividades físicas no limite da resistência muscular, mas isso faz parte das características que cercam o trabalho do atleta profissional. Desde o início de sua carreira ele já está ciente deste fato.
Determinadas obrigações a que o atleta se submete extrapolam sua vida profissional, o que não seria admitido e tolerado em um contrato de trabalho ordinário. O atleta profissional deverá observar: a) aspectos desportivos relacionados a treinos, concentração, preparação física e disciplina tática em campo; b) aspectos pessoais e íntimos, como limitação na ingesta de álcool, alimentação equilibrada, controle de peso, qualidade do sono, uso de medicamentos e comportamento sexual; c) aspectos convencionais, como o uso de brincos e vestimenta apropriada; e d) aspectos disciplinares relacionados a ofensas a árbitros, dirigentes, colegas, adversários e torcedores, ou recusa em participação em entrevistas após o jogo.
Não se desconhece que a Constituição Federal de 1988 prevê em seu art. 7º, inciso IX, que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno. Contudo, a atividade do atleta é peculiar e é indene de dúvidas que o empregador do atleta (o clube de futebol) não vai querer, nunca, que o seu jogador participe de jogos ou treinos que invadam a madrugada, aumentando o risco de graves lesões em razão da fadiga e de grandes esforços.
Em determinadas situações, a participação em jogos após às 22 horas decorre de exigência das empresas que transmitem o espetáculo, não cabendo ao empregador alterar esta programação. É claro que, para isso, poderá haver uma compensação remuneratória, devendo ser ressaltado que o atleta será exposto a um público considerável de telespectadores.
A atividade do atleta profissional é um trabalho, porém um trabalho diferenciado em razão de sua própria natureza, razão pela qual as previsões constitucionais são observadas com cautela. Caso contrário, atletas profissionais de 16 e 17 anos estariam proibidos de jogar após às 22 horas, o que poderia significar a sentença de morte da carreira do jogador. Afinal, ninguém poderia imaginar a substituição do Neymar, no auge de sua carreira no Santos, em um jogo às quartas-feiras, em razão de uma interpretação cartesiana da Constituição Federal que proíbe o trabalho noturno para menores de 18 anos.
O Tribunal Superior do Trabalho tem uma decisão emblemática acerca do tema, que apesar de ter sido proferida na década de 1980, reflete uma tendência e o nosso posicionamento.
Ao proferir voto nos autos do Recurso de Revista nº. 3.866/82, o Ministro Ildélio Martins, à época integrante da 1ª Turma do TST, afirmou que as condições peculiares do contrato do atleta profissional de futebol não toleram incursão no adicional noturno, em louvor dos critérios universalmente consagrados na exibição profissional do atleta. Esse tipo de prestação noturna participa visceralmente do contrato e se há de tê-la como abrangida na remuneração estipulada.
No ano de 2016, ao julgar o AIRR-442-86.2012.5.04.0008, a 6ª Turma do TST teve a oportunidade de afirmar que a atividade futebolística é incompatível com a fixação de horário de trabalho, razão pela qual não caberia falar em duração diária de trabalho, desde que respeitados o intervalo entre jornadas de 11 horas consecutivas e a duração máxima do trabalho, de 44 horas semanais. Assim, cabendo ao empregador a distribuição do trabalho durante a semana, também não incide adicional noturno. A referida decisão foi proferida em ação ajuizada em face ao Grêmio de Porto Alegre, na qual se discutia validade da previsão em norma coletiva que estabelecia remuneração que englobava pagamento de horas extras e adicional noturno a integrante de comissão técnica (responsável técnico da equipe), devidos em caso de viagem.
O TRT da 18ª Região, em recente acórdão da lavra do eminente Juiz Convocado Celso Moredo Garcia, conhecedor e estudioso do Direito Desportivo, ressaltou as peculiaridades da atividade do atleta para asseverar que eventos esportivos durante o período noturno não depende exclusivamente da vontade do réu, mas também de forças de ordem social e econômicas alheias ao contrato de trabalho, de modo que, por força da autonomia privada, as partes contratantes prevejam no contrato especial de trabalho desportivo um pagamento adicional. (RO 11608-46.2017.5.18.0010).
Portanto, em razão de todas as especificidades que cercam a atividade deste profissional, não há que se falar em direito à percepção do adicional noturno.
Contudo, o atleta poderá receber acréscimos remuneratórios, pactuados previamente em contrato de trabalho, contemplando determinado valor em razão de partidas disputadas após as 22:00horas, nos termos do art. 28, § 4º, III da Lei Pelé.
A solução para reduzir a litigiosidade na área desportiva seria a adoção de normas coletivas que contemplassem o regramento de verbas trabalhistas. Os acordos ou convenções coletivas de trabalho poderiam disciplinar questões relacionadas a adicional noturno, repouso semanal remunerado, não integração de luvas e bichos no contrato de trabalho e várias outras rubricas.
Por enquanto, até que as entidades sindicais se organizem em prol da segurança jurídica no âmbito do desporto, será fundamental que o TST se manifeste conclusivamente acerca deste tema, observando (como tem feito) as peculiaridades da relação que envolve atleta e clube.
*Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa; Professor à contrato da Universidade La Sapienza de Roma; Membro da Comissão de Direito do Trabalho do IAB; Sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados
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