Você conhece histórias de jogadores de linha que foram obrigados a pegar o par de luvas e quebrar um galho debaixo das traves para salvar seus times. Até o Rei Pelé viveu essa experiência. Gaúcho, Caio, Diego Souza e recentemente Maicon, do São Paulo, na altitude de La Paz, em um jogo da Libertadores. Em homenagem ao Dia do Goleiro, o blog pesquisou personalidades de fora do mundo da bola que, em algum momento da vida, viveram a experiência de ser um guarda-metas como se diz no português da terrinha, goalkeeper, em inglês, gardien em francês, arquero em espanhol ou torhüter no idioma alemão.
No início dos anos 1930, por exemplo, Albert Camus, autor do romance A Peste e O Estrangeiro, viveu dias de goleiro da Universidad de Argel, na Argélia. Há relatos de que ele era alto, magro e de aspecto físico frágil. Camus não virou profissional, mas refletiu sobre a função. “Depois de muitos anos em que vivi numerosas experiências, seguramente tudo o que sei sobre moral e responsabilidade eu devo ao futebol. Aprendi que a bola nunca vem para a gente por onde se espera que venha. Isso me ajudou muito na vida, principalmente nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser aquilo que a gente pensa que são”, disse Camus em uma entrevista à revista especializada em futebol France Football, em 1957.
No time de escritores goleiros também jogou Arthur Conan Doyle. Antes de publicar As aventuras de Sherlock Holmes, ele entrou para a história como primeiro goleiro do Portsmouth, da Inglaterra.
A origem do Dia do Goleiro
Em um velado reconhecimento pelo trabalho do pernambucano Aílton Corrêa de Arruda, o Manga, na Seleção Brasileira na Copa de 1966, o tenente Raul Carlesso e o capitão Reginaldo Pontes Bielinsk, professores da Escola de Educação Física do Exército, no Rio, criaram o Dia do Goleiro e escolheram para homenagear todos os heróis da posição em 26 de abril, data de nascimento de Manga, que fez história com as camisas do Botafogo, Sport, Inter, Operário-MG, Coritiba e Grêmio. Aniversariante do dia, Manga vive atualmente em Salinas, no Equador.
No Brasil, goleiro milagreiro logo vira santo. São Marcos, São Prass, São Victor… Talvez, seja porque um papa que teve seus dias de goleiro foi canonizado. Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, virou santo em 2014. Amigos contam que, na infância, a posição preferida do papa era a de goleiro nas peladas em Wadowice, na Polônia. Contam que ele era robusto e corajoso quando defendia o espaço de 7,32m de comprimento por 2.44 de altura. “Quando ele atuava como goleiro, era como um leão em frente à meta. Era corpulento, forte e atlético”, entrega Stanislaw Jura, amigo de infância de João Paulo II, em 1999, à revista Frontline.
Ernesto Che Guevara tinha problemas respiratórios. Havia restrições médicas à prática de esporte, mas o asmático revolucionário não abria mão de usar o futebol como oxigênio para as cruzadas. Atuar no gol era um santo remédio, segundo relata o amigo Alberto Granado no livro La pátria deportista, de Ariel Scher.
“Em 1963, em Santiago de Cuba, fizemos um jogo de futebol. Ele (Che Guevara) era ministro das Indústrias e uma figura muito popular. Mas, quando estava no gol, não se lembrava do cargo nem de nenhuma outra coisa. Enfrentávamos uma equipe da universidade que era treinada por Arias, um espanhol. Durante o jogo, Arias recebeu a bola e avançou, mas o Che saiu do gol e lhe deu o bote. Ninguém podia imaginar que o ministro iria se jogar aos pés de alguém por causa de uma bola. Mas ele era assim”, revela Granado.
Um dos maiores ídolos da história do Real Madrid é o goleiro Casillas, atualmente no Porto. Mas poderia ter sido Julio Iglesias. O cantor arriscou jogar na posição como goleiro do Sagrados Corazones, colégio onde estudava. Um dia, foi parar no elenco B do Real Madrid. Queria ser jogador profissional. Ao mesmo tempo, estudava direito no Colégio Mayor de San Pablo. Há quem diga que Julio Iglesias era um goleiro medíocre. Mas foi um acidente que o divorciou das traves. Ele voltava de Majadahonda com três amigos quando o carro se descontrolou. O então jogador quase ficou paralítico, esteve à beira da morte. Recuperado, abortou o plano de ser goleiro e marcou um gol de placa ao se tornar um dos maiores cantores românticos do mundo.
“Quem mais gosta da bola é o goleiro. Todo mundo a chuta, só o goleiro a abraça”
Pompéia, histórico goleiro do América-RJ
Presidente da República de 1954 a 1955, depois do suicídio de Getúlio Vargas, Café Filho é o único chefe de estado na história do Brasil que foi jogador de um time de futebol. Em qual posição? No gol. Potiguar, fundou o Alecrim. Sem habilidade com os pés, foi parar no arco nos anos de 1918 e 1919. “O arqueiro que certa vez me substituiu deixou que os adversários fizessem 12 gols, enquanto eu deixara a bola passar nas traves apenas 10 vezes”, ironizou Café Filho em sua autobiografia Do Sindicato ao Catete: Memórias políticas e confissões humanas, de 1966, referindo-se à histórica derrota do Alecrim por 22 x 0 para o América-RN.
Há quem tenha realizado o sonho de ser goleiro ao menos uma vez na vida, como Café Filho. E outros que ficaram apenas na vontade. É o caso do ensaísta russo Vladimir Nabokov. “Eu era louco para ser goleiro. Na Rússia e nos países latinos, esta arte altaneira sempre esteve cercada de um halo de fascínio singular. Distante, solitário, impassível, o grande goleiro é seguido nas ruas pela meninada em transe. Rivaliza com o toureiro e os aviadores como objeto de emocionada veneração. A camisa, o boné, as joelheiras, as luvas saltando dos bolsos da calça o distinguem do resto do time. É a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor”.
Os escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues não foram goleiros. Mas elaboraram, talvez, as melhores definições sobre os homenageados do dia. “Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito”, escreveu o uruguaio.
Nelson Rodrigues disse uma vez. “Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol, e, numa palavra, a derrota”.
UM BATE-BOLA COM MANGA
Ele deu origem ao Dia do Goleiro e faz hoje 80 anos
O que significa para você ter inspirado a criação do Dia do Goleiro?
Reconhecimento depois do que passei após a Copa de 1966. Foi difícil lidar com as críticas depois de substituir o Gilmar e falhar contra Portugal.
Quem é o melhor camisa 1 que você viu jogar?
Rogério Ceni. Habilidoso com os pés, líder e artilheiro. O sonho de qualquer treinador.
E o melhor do mundo na atualidade?
Neuer, da Alemanha e do Bayern de Munique. É frio, tem o respeito da defesa e muita sorte, que não pode faltar a um goleiro.
Como foi para um ex-goleiro ver o Julio César sofrer sete gols da Alemanha na Copa?
Eu passei mal. Só quem é ou foi goleiro sabe o que é levar cinco só no primeiro tempo. Ele não teve culpa, mas a dor dele será tão grande quanto a que o Barbosa carregou até o fim da vida.
Você é um dos 14 goleiros negros da história da Seleção. Orgulho?
Antigamente isso era difícil. A prova de que mudou é o Jefferson, que merece ter a confiança do Dunga (técnico da Seleção Brasileira).
O Brasil é penta. Quem, na sua opinião, foi o melhor goleiro nos cinco títulos mundiais?
Para mim, o Taffarel. Eu o vi aquele guri crescer lá no Internacional. Foi o mais decisivo de todos eles, principalmente na habilidade para defender pênaltis.