ATENÇÃO! Este texto contém spoilers. Recomendo que assista (ou tenha assistido) ao filme A Chegada. Lavo minhas mãos a partir de agora.
Fui ver A Chegada por pura curiosidade com a reação/recomendação do Diogo. E, de fato, é um dos melhores filmes que já vi. Fiquei um bom tempo considerando as teorias que fundamentam a trama. E agora, depois da leitura da novela que o originou, vou organizar meus pensamentos e dividi-los com você.
A novela ganhou o prêmio Nebula – concedido anualmente para as melhores obras de ficção científica e fantasia publicadas nos Estados Unidos nos dois anos anteriores – em 2000. Há outras histórias no livro, que eventualmente comentarei também. Só essa história já é densa o bastante. Lembra que o Diogo nem quis fazer uma resenha do filme? Serei pretensiosa.
Há algumas diferenças entre a história e o filme, mas foram todas uma questão de adaptação em função da mídia. Filmes tem que ter tensões, clímax, etc. Esse não é o foco da história. O filme tem um conflito entre os países, importante no roteiro, mas que não ocorre na história. O foco é completamente filosófico, digamos assim. Nem aquela explicação do motivo da vinda dos heptapodes está presente. Ficamos no escuro. Insones até, em alguns casos.
Então deixa eu dividir minha insônia com você.
Hipótese de Sapir-Whorf e Simetria Radial
Um dos pontos importantes da história é a transformação do modo de pensar, mais especificamente o modo de recordar, da personagem principal. A medida que Louise começa a compreender a linguagem escrita dos heptapodes, suas memórias formam um bloco, sem passado nem futuro, mas simultâneo. Ela passa a ver o futuro, mas não como clarividência ou algo do tipo, mas porque as categorias de tempo deixam de fazer sentido como elas fazem normalmente para nós, com sentido (para frente e para trás).
O nome técnico dessa experiência da Louise é relativismo linguístico – a tal da hipótese de Sapir-Whorf – e significa basicamente que sua forma de ver o mundo é dependente da linguagem que você fala. Essa teoria fez muito sucesso por um tempo, mas perdeu força a partir dos anos 1960. Hoje em dia, é raro achar quem defenda uma aplicação radical dessa hipótese, mas há os que defendam uma leve influência da linguagem no pensamento. E faz sentido, considerando a importância da linguagem, e o fato de você, de certa forma, pensar através da linguagem. Depois de aprendê-la, claro. Talvez isso seja uma das razões de não termos memórias de quando éramos bebês. Já pensou nisso? Seu pensamento mediado pela linguagem não pode acessar memórias pré-linguísticas.
Mas quero que considere algo comigo, que não está nem no filme nem na história, mas que dá para ser especulado. Quero jogar na rodinha e sair correndo. E se, e se… a forma como percebemos o mundo influenciasse a linguagem? E por forma eu me refiro estritamente a nossa anatomia. Seres humanos, como a maioria dos animais, possuem simetria bilateral, ou um eixo de simetria. Então, para nós há algo frente e atrás. Os heptapodes têm simetria radial, ou vários eixos de simetria. Os conceitos “frente” e “atrás” não existem. E eles têm sete olhos, voltados para todas as direções ao redor do seu eixo. Essa diferença é percebida na linguagem. Nossa linguagem, tanto oral como escrita, é linear. A linguagem dos heptapodes é não linear e simultânea. Cada logograma é uma sentença completa formada num único instante.
Até aqui é ok. Mas agora a cpu começa a esquentar.
Tempo e determinismo
Os heptapodes sabem o “futuro”.
Depois de Einstein, falar sobre tempo virou meio que um papo de drogado. Nós vivemos em quatro dimensões: três espaciais e uma temporal. Essa dimensão temporal tem apenas um sentido: para frente. Nós experimentamos a passagem do tempo, assim como experimentamos que o sol nasce e se põe. Mas se você pudesse sair dessas quatro dimensões, percebê-las externamente, veria apenas movimento. Então tecnicamente, o tempo, como nós entendemos corriqueiramente, não existe. O que ocorre é o movimento no espaço-tempo. (Fãs de Interestelar! Roger that?)
Nesse cenário, o futuro é um movimento num ponto a frente de um referencial. Dá para ouvir o cooler…
A consequência lógica disso, pelo menos na minha cabeça, e na cabeça do autor (vou colocar um link para referência), é o determinismo. Quando Louise vê o futuro, ela não pode mudá-lo. Como o Ted diz na entrevista, trata-se de “abraçar o inevitável”. Nesse momento, os cabelos da nuca de muita gente arrepiam. Mas isso é outra coisa que vou jogar na rodinha e sair correndo.
Lembra que eu disse que a associação entre simetria e percepção não está na história, mas pode ser especulada? De onde eu tirei isso? Mais para o final, Louise chega à conclusão de que o universo físico é uma linguagem com gramática ambígua. Quando os ancestrais dos humanos e dos heptapodes adquiriram consciência, eles percebiam o mesmo mundo físico, mas o processaram de maneira diferente. Enquanto os humanos desenvolveram um modo sequencial de consciência, os heptapodes desenvolveram um modo simultâneo de consciência. Nós experimentamos os eventos linearmente, percebemos relações de causa e efeito. Eles experimentam os eventos ao mesmo tempo, e percebem um propósito ligando todos eles. Minha extrapolação foi ligar isso à anatomia.
Para finalizar, temos o pulo do gato: se você pode ver tudo o que vai acontecer, você entende o significado. Você se move no espaço-tempo com um objetivo. Nesse contexto, liberdade e restrição deixam de fazer sentido. Nessa perspectiva, nossas vidas são encenações únicas na grande peça cósmica do universo. Alguém sentado na plateia pode até saber o que vai acontecer de antemão. Mas, de qualquer forma, a peça precisa ser encenada.
História da sua vida e outros contos, Ted Chiang – Editora Intrínseca
Aqui esta o vídeo que falei: https://www.youtube.com/watch?v=xzEPU2PTjT4
Peço desculpas aos que vão ficar ofendidos por estar em inglês, mas é a vida.
Texto escrito por:
– Dona Tereza –
“Saia do meu gramado!”