Transar com o ex da amiga é traição? Entenda limites e condutas

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Na quinta temporada de Emily in Paris, a amizade entre Emily (Lily Collins) e Mindy (Ashley Park) passa por um momento delicado: o envolvimento de uma das personagens com o ex-namorado da amiga. O tema, frequentemente abordado em produções culturais, culmina em um questionamento: afinal, transar com o ex de uma amiga é traição? 

Para a sexóloga e psicóloga Alessandra Araújo, tal situação envolve a interseção de lealdade, desejo e autonomia, sendo necessária a análise do código de ética estabelecido entre as amigas. “A decisão de se envolver com o ex-parceiro(a) de uma amiga não tem uma resposta universal, mas sim uma série de negociações morais e afetivas”, resume. “Depende completamente do contexto da amizade e do grau de sofrimento que o término causou.”

A especialista cita casos distintos para ilustrar quando a situação é problemática ou não. Caso o término tenha ocorrido há muito tempo, a amiga seguiu em frente, a relação deles foi breve, ou a amizade é casual, o ato pode ser considerado eticamente aceitável — “Desde que seja comunicado com honestidade”, acrescenta Alessandra. Já quando o término é recente ou traumático (infidelidade, violência), a amiga ainda nutre e expressa sentimentos, ou dependia muito desse parceiro, o envolvimento pode ser considerado como quebra de lealdade. 

“Existe um código implícito (ou explícito) de que os ex-parceiros de longo prazo são “intocáveis” dentro do círculo social”, analisa a psicóloga. “O cerne da questão é se o ato prioriza seu desejo sobre o bem-estar emocional da amiga.” 

O apelo pelo fruto proibido

Aquilo que não se pode tocar muitas vezes surge com mais urgência do que se fosse permitido. O desejo pelo proibido é excitante, conforme a especialista, porque a transgressão da lealdade aciona o sistema de recompensa. “É carregado de adrenalina e tensão”, explica. 

A rivalidade feminina ainda é um fator a ser investigado. “Pode haver uma rivalidade inconsciente, mesmo em amizades saudáveis”, Alessandra aponta. “O envolvimento com o ex pode ser um meio de obter validação indireta: ‘Se ele(a) me desejou depois dela(e), isso me torna mais atraente ou desejável’.”

Já que as lacunas de tudo que é desconhecido — ou semi conhecido — são preenchidas por idealizações inventadas pela própria mente, a fantasia do que o outro é também pode interferir na decisão. “O ex da amiga já tem uma história conhecida e validada. A pessoa pode estar projetando a ideia da intimidade e do vínculo que a amiga teve, sem ter que passar pela fase inicial de construção do relacionamento”, justifica a sexóloga. 

Existe um tempo mínimo antes do envolvimento? 

Embora não exista uma regra cronológica universal quando se trata de um tempo mínimo ético antes de se envolver com o ex de uma amizade, o tempo de luto e recuperação da amiga devem ser respeitados. Nesse caso, a cronologia é medida por qualidade, não duração. 

“O ‘tempo mínimo’ deve ser medido pela qualidade da superação. Se a amiga está em outro relacionamento estável, feliz e demonstrou ter processado a dor do término, o tempo pode ser menor”, Alessandra exemplifica. “Psicologicamente, um ano é o tempo mínimo para que uma pessoa passe por todas as datas e eventos (aniversários, feriados) sem o ex, permitindo o processo completo de luto. Envolver-se antes disso, especialmente em términos longos, é visto como insensível.”

Consentimento, desejo e julgamento 

O consentimento da amiga é, para a especialista, o fator mais importante de toda a equação. “Se a amiga estiver genuinamente resolvida com o término e der sua bênção clara e sem pressão, a leitura moral se transforma de “traição à amizade” para um acordo ético”, argumenta. 

A permissão, no entanto, deve ser concedida em um estado de autonomia emocional — ou seja, não apenas como uma solução para evitar um conflito. “Se ela diz “sim” com lágrimas nos olhos ou sob visível dor, o envolvimento ainda é antiético”, afirma a psicóloga. 

Mesmo que o desejo legítimo possa conflitar com a lealdade amistosa, Alessandra disserta que a quebra de confiança é a “ação de priorizar a satisfação desse desejo em detrimento do código ético e emocional da amizade, causando sofrimento ou constrangimento previsível à amiga.” Em alguns casos, é recomendado que o desejo seja reprimido em nome do vínculo de amizade.

Vale lembrar que o julgamento acerca da situação contempla um fator de gênero: a dupla moral sexual. “Espera-se que as mulheres priorizem a lealdade afetiva e a sororidade acima do desejo sexual. A mulher que rompe essa regra é vista como ‘traidora’ ou ‘selvagem’”, analisa a especialista. “O envolvimento entre homens e ex-parceiras de amigos é visto, muitas vezes, como uma “competição natural” ou algo menos grave, pois a lealdade masculina é codificada de forma diferente — em torno de códigos de honra e competição, não de afeto e vulnerabilidade.”

Entre prazer e culpa

O envolvimento com o ex de uma amiga ainda pode resultar em mais culpa do que prazer. Quando o sofrimento da amiga é testemunhado — ou a amizade acaba por causa da relação romântica priorizada—, a culpa é uma resposta à violação dos valores de lealdade e cuidado. Em outro caso, quando a relação é mantida em segredo, gera ansiedade, paranóia e o sentimento de viver uma mentira — “O que mina o prazer”, diz Alessandra. 

Embora seja difícil separar a vida sexual da amizade sem que uma interfira na outra, condições específicas podem favorecer ambas as relações. “A amiga deve estar totalmente resolvida com o ex (tempo mínimo de 3 anos de término, por exemplo), e a amizade deve ser madura, com comunicação de alto nível”, a psicóloga ilustra o cenário ideal. Na maioria dos casos, no entanto, as coisas se misturam. “A amizade se torna o contexto social para o novo casal, e as lembranças do ex se tornam inevitáveis, o que quase sempre impõe um afastamento, mesmo que temporário, da amiga.”

Entre a história afetiva da amiga e a autonomia sexual individual, a ética relacional exige responsabilidade social. “Em um conflito direto, a história afetiva da amiga pesa mais, pois um relacionamento casual com o ex dela dificilmente compensará a perda de um vínculo de amizade de longo prazo”, declara a especialista. “A autonomia deve ser exercida fora do círculo de sofrimento da amizade.”

Como ter a conversa difícil

Antes mesmo do envolvimento, Alessandra recomenda o diálogo aberto e sincero com a amiga. A permissão deve ser requisitada com sensibilidade, destacando o valor da amizade. “Antes de qualquer coisa acontecer, eu preciso saber como você se sentiria se eu explorasse isso. Você está 100% confortável?”, demonstra. Caso a resposta seja negativa, a decisão deve ser aceita sem argumentar, culpá-la ou tentar convencê-la de que ela está exagerando. “Esteja preparada para o não.” 

E se a conversa só acontecer depois do envolvimento com o ex? Para Alessandra, a abordagem tem que ser de reparação. “Seja honesta e rápida, não deixe que ela descubra por terceiros”, ressalta. “Assuma a responsabilidade pela dor, não tente justificar o ato pelo desejo. Dê espaço, reconheça que a amiga precisa processar a notícia e aceite o afastamento temporário como parte da consequência da sua escolha.”

Entre desejo, lealdade e autonomia, a discussão exposta em Emily em Paris evidencia que não há respostas simples. O envolvimento com o ex de uma amiga exige responsabilidade afetiva, comunicação honesta e leitura sensível do contexto emocional de quem esteve ali antes. Em suma, quando o prazer individual atravessa o território do sofrimento alheio, a ética relacional pede limites — e, muitas vezes, a escolha mais madura é preservar o vínculo de amizade, mesmo que isso signifique abrir mão do desejo.