Na tentativa de escapar da regulação tanto nos contratos quantos nos reajustes anuais, operadoras e corretoras de planos de saúde do Distrito Federal extinguiram do seu portfólio de produtos o único serviço normatizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Dessa forma, o consumidor que quiser contratar um plano individual – cujo contrato é firmado com a pessoa física – não vai encontrar a modalidade disponível. Os corretores vão alegar que “ninguém mais em Brasília trabalha com o plano individual, só com o adesão ou empresarial” e vão ajeitar alguma forma de encaixar o cliente em algum plano coletivo.
A prática é proibida por normas da ANS, que determinam que as operadoras e os terceirizados, como as corretoras, que possuem planos individuais ou familiares ativos para a oferta não podem se recusar a vender planos. Uma súmula interna da agência determina que as operadoras “não podem desestimular, impedir ou dificultar o acesso ou ingresso de beneficiários”.
Ildecer Amorim, presidente da Comissão de Direitos do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional DF, lembra que negar a venda de um produto ou induzir o consumidor a comprar plano coletivo é prática desleal e configura vantagem excessiva, o que é proibido pelo Código de Defesa do Consumidor. “Não vendendo planos individuais, as operadoras e corretoras pensam que estão imunes escapando da ANS, mas esquecem que tem o poder Judiciário, que pode ser acionado em caso de abusividades”.
O promotor de Defesa dos Direitos do Consumidor Trajano Sousa de Melo lembra que as operadoras preferem diminuir os lucros, uma vez que os planos coletivos são mais baratos, a se submeterem à regulação. “Essa tentativa de ficar à parte do regulador faz com que as empresas criem inúmeras estratégias, como o preço mais baixo. A ANS precisa ficar atenta às questões da realidade prática e regular para evitar a insegurança do consumidor”.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), que representa os 17 maiores grupos de operadoras do país, defende que as operadoras têm a livre iniciativa de escolher quais serviços vão comercializar. Dessa forma, as empresas só estariam irregulares se firmassem com a ANS o compromisso de comercialização daquele determinado tipo de plano. A ANS informou que no DF há representantes de venda do plano individual e, portanto, eles não podem ser retirados do mercado.
Irregularidades
Sem se identificar, o Blog do Consumidor entrou em contato com sete corretoras no DF e, em todas, os atendentes tinham o discurso alinhado de que as operadoras não vendem mais o plano individual e que qualquer pesquisa em outros locais seria inútil, uma vez que a exclusão do serviço era geral e os preços, tabelados.
Para resolver a ausência do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), número necessário para a contratação dos planos coletivos, as corretoras bolam as mais diversas artimanhas. Uma delas, proposta pela AF Corretora, localizada na Asa Sul, sugere ao consumidor que ele se filie ao Sindicato dos Comerciários (Sindicom) do DF. O atendente promete que o cliente não terá nenhum custo e que não é preciso trabalhar no comércio para conseguir o registro. Sindicalizado, o consumidor pode assinar o contrato de adesão. “Lembrando que a prática de se sindicalizar sem fazer parte da categoria é considerada ilegal”, explica Joana Cruz, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Procurado pela reportagem, o Sindicom afirmou, via assessoria de imprensa, que a prática não é do conhecimento do sindicato e que o vendedor não tem autorização nem para usar o nome do sindicato, nem para filiar pessoas.
Outra estratégia usada pelas corretoras é sugerir ao cliente que ele abra um cadastro de Micro Empreendedor Individual (EI), programa do governo federal para reduzir a informalidade no país. Foi o que orientou o atendente da Abramis Saúde, localizada no Setor Comercial Sul. Ao se registrar como EI, o consumidor terá um CNPJ e pode fazer um plano empresarial. O Sebrae-DF, um dos principais parceiros no programa de formalização via EI informou via nota que “desconhece qualquer denúncia referente ao uso indevido de formalizações de microempreendedores individuais”.
Uma justificativa para os abusos na comercialização de planos de saúde via corretoras se deve ao fato de os profissionais e os estabelecimentos não serem fiscalizados, nem pela ANS, nem por entidades de classe. A ANS que argumenta que não tem competência para isso e cabe à Superintendência de Seguros Privados (Susep) essa tarefa. Já a Susep alega que profissionais e serviços ligados a plano de saúde são de responsabilidade da ANS. Federação Nacional dos Corretores (Fenacor) e o sindicato local da categoria (Sincor) também argumentam que não representam os corretores de planos de saúde porque eles não precisam de habilitação específica para atuarem no setor.
O Blog do Consumidor tentou contato com as corretoras citadas na reportagem. Na AF Corretora uma pessoa identificada como Nilton disse que quem poderia responder a demanda estava viajando para o Chile, mas salientou que também não concorda com a restrição da venda dos planos individuais. Na Abramis, um atendente identificado como Gilson pediu para que retornássemos a ligação 30 minutos depois, porém, mais tarde, a reportagem não conseguiu mais contato. Top 1000 e Plano de Saúde Brasília não atenderam os telefonemas.
Legalidade
A preocupação das entidades de defesa do consumidor, como o Idec, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios com a explosão dos planos coletivos se dá pela falta de regulação do tema. Dos 48 milhões de consumidores de planos de saúde no Brasil, 77% são de planos coletivos. No DF, a proporção é maior, só 7,15% dos 775.427 usuários de assistência médica têm plano individual, segundo dados da ANS.
O desaparecimento do plano individual do mercado é visto pelos especialistas como um prejuízo para o consumidor. Somente os planos individuais têm os reajustes anuais firmados pela ANS e são os únicos que a rescisão unilateral do contrato não pode ocorrer. Nos planos coletivos, isso não ocorre. De acordo com pesquisas recentes do Idec, sem controle, a média de aumento foi de 82,21% nos coletivos. Naqueles coletivos com até 30 vidas, cuja resolução mudou em maio deste ano (veja o que diz a lei), o reajuste médio foi de 11,9%, sendo que a inflação no período foi de 6,49%. Nos individuais, o aumento máximo proposto pela ANS de 7,93%.
Como os planos coletivos são os que mais crescem no país e possuem mais beneficiários, a sugestão das entidades de proteção de defesa do consumidor é que a ANS formule rapidamente resoluções para essa categoria.“A regulação é falha, omissa, justamente no tipo de plano que mais têm usuários, os coletivos. Por isso, o consumidor perde se não tem a opção do plano individual”, afirma Joana Cruz, advogada do Idec. Os coletivos ficam de fora das negociações com a ANS porque no entendimento da agência as negociações são entre pessoas jurídicas e não há parte frágil na negociação, como ocorre nos individuais.
Para entender melhor:
Formas de contrato
Os planos de saúde no Brasil podem ser individuais ou coletivos. Nos coletivos, eles podem ser de adesão ou o empresarial. Nesses casos, o registro é feito por uma pessoa jurídica e o beneficiário precisa pertencer a uma empresa ou a uma associação, como o sindicato, por exemplo.
O que diz a leiOs falsos coletivos
No ano passado, a ANS aprovou regras específicas para o cálculo do reajuste anual dos planos de 2 a 30 vidas, conhecidos como falsos coletivos. A Resolução Normativa 309/2012 estabelece que, a partir de maio deste ano, as operadoras devem agrupar todos os contratos 30 vidas e calcular um percentual único de aumento para eles. A ideia é diluir os custos dos planos entre um número maior de usuários. 85% dos usuários de planos coletivos (31 milhões) estão nessa modalidade.