A Operação Mister Hyde completou cinco meses como um dos mais chocantes escândalos médicos do país. E é somente o começo da investigação, que promete desmontar esquema envolvendo o pagamento de propina para médicos e hospitais por empresas de órteses e próteses (OPME). Ainda este mês, a Polícia Civil do Distrito Federal vai deflagrar mais uma fase contra médicos, hospitais e funcionários de planos de saúde que, até então, não tinham aparecido em fases anteriores.
Desde o início da operação contra a Máfia das Próteses, pelo menos 150 vítimas procuraram delegacias relatando que foram submetidas a cirurgias desnecessárias. E novos prontuários comprometedores não param de chegar à Justiça. Mais de 10 audiências foram realizadas no Tribunal de Justiça após a apresentação da denúncia do Ministério Público do DF e dos Territórios (MPDFT), com base nas investigações conjuntas com a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Deco). As delações premiadas das funcionárias da TMedical, principal empresa envolvida no esquema, Sammer Oliveira Santos, Danielle Beserra de Oliveira e Rosângela Silva de Sousa, somam 57 páginas e devem deixar a defesa dos acusados sem muita saída. Por causa das colaborações, a audiência da última quarta-feira foi transferida para 20 e 21 de fevereiro, de modo que os advogados dos envolvidos possam ler os depoimentos e preparar a defesa.
Com base na primeira denúncia, 19 envolvidos foram indiciados, sendo oito médicos. Dos acusados, três continuam presos preventivamente: Johnny Wesley Gonçalves Martins, Micael Bezerra Alves e Antônio Márcio Catingueiro Cruz.
Imersos nas investigações locais, a Polícia Civil do DF não sabe precisar se a máfia que age no Distrito Federal tem relação com outras. Na semana passada, Pedro Ramos, diretor da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), lançou um livro falando dos prejuízos das máfias das próteses para os beneficiários brasileiros, o modus operandi e as possíveis soluções apontadas pela entidade para amenizar a atuação criminosa. Em entrevista ao Correio, Ramos contou como tem cooperado com a Mister Hyde; disse que, após a deflagração da operação, os custos médicos caíram 30% em Brasília e informou que a Abramge vai processar 100 médicos em todo o país pela prática de propina, inclusive alguns profissionais de Brasília.
O que faz o setor de órteses e próteses ser tão visado pelas máfias de saúde?
Porque é o mais caro. Em 70% das cirurgias realizadas em hospital, você tem a implementação de algum objeto no ser humano. As indústrias internacional e nacional não têm um marketing. Como vai fazer marketing de uma prótese? O marketing dela é a propina. Então, elas pagam propina para o médico. Mesmo nos Estados Unidos, onde é proibido, elas driblam a legislação e chegam até o consultório.
O modus operandi das máfias da saúde no Brasil é similar?
Esse é um fenômeno global. Você tem ações no mundo inteiro, México, Venezuela, França, Inglaterra… Agora, o que é notório é que o Brasil é o único país que se organizou para combater essa prática. Nós temos uma estrutura de combate e queremos resolver o problema. Então, quando nós ingressamos com 11 ações nos EUA contra empresas dessa área no mercado americano, não é para pegar dinheiro, é para resolver o problema. E como resolve o problema? Parando de pagar propina.
Há dificuldade para provar a atuação desses grupos mafiosos?
A polícia precisa de uma expertise. E o livro traz essa proposta, de criar uma divisão específica para apurar esses crimes. Eu fui no DF voluntariamente prestar minha ajuda. Entrei em uma sala onde eles fizeram as apreensões. Não dá. Tem que ter um médico ali. Falta qualificação. O juiz não tem essa expertise. O juiz não vai embora para casa com uma petição na mesa dizendo que, se o paciente não fizer a cirurgia amanhã, morre. Urgência e emergência não têm que ir para a Justiça. A máfia se aproveita disso.
Os hospitais citados na Operação Mister Hyde ainda não foram denunciados. Há dificuldade para fazer denúncias contra esses estabelecimentos?
Os hospitais precisam entender um recado: eles estão matando as galinhas dos ovos de ouro. Noventa e sete por cento da receita dos maiores hospitais do Brasil vêm dos planos de saúde. Incentivando e até participando de esquemas de corrupção, estão destruindo a fonte pagadora. Agora, o erro é nosso, porque a gente paga por procedimento. Não vamos mais pagar por procedimento, vamos pagar por resolutividade. Gosto de dar o seguinte exemplo: eu boto meu filho de 10 anos para operar fimose no hospital, ele pega uma infecção e fica 30 dias no hospital, na UTI. Eu tenho que pagar a conta? É o hospital que paga, que foi irresponsável.
Como a Abramge tem ajudado com as investigações da Mister Hyde?
A gente levou um dossiê. São 4 mil documentos que dão um caminho. Por exemplo, eu tenho um documento que mostra que eu, plano de saúde, iniciativa privada, pago, em um stencil sem droga, R$ 500. O governo federal, que compra mais que eu, paga R$ 2 mil. São essas evidências que a gente leva para o Ministério Público.
Quais são os efeitos de uma operação como a Mister Hyde?
Quando ocorre a operação, o custo médico cai. É a sirene da polícia na rua. O bandido se esconde. Mas quando passou, ele volta.
Em quanto caiu o custo médico em Brasília?
Está todo mundo com medo. Ninguém sabe o que vai acontecer. Em Brasília, caiu de 20% a 30% a quantidae de cirurgias. Esse é o número da fraude.
Nos áudios da Mister Hyde, os operadores do esquema falam em “planos de saúde com auditoria frágil”. Que tipo de fragilidade seria?
Se tem auditoria frágil, é porque tem auditoria corrupta. Então eu quero saber. Tanto é que eu fui lá e disse ao delegado: ‘me fala quem é’.
E o delegado passou quem era?
Não (risos). Na verdade, sabemos que somos sujeitos ativos da corrupção. Provavelmente, entre os nossos funcionários, há alguém que está se vendendo. Doa a quem doer, nós vamos cortar na própria carne, não temos medo disso. As empresas de planos de saúde hoje, no Brasil, são profissionalizadas, elas têm capital internacional. Não estamos para festa.
O senhor acha que a máfia de Brasília pode estar relacionada com outras no Brasil?
Há delações premiadas ocorrendo em Brasília. Uma delação de Brasília pega o Brasil inteiro, porque o modus operandi é único. O corruptor de Brasília é o mesmo de São Paulo. Confio muito nessa equipe da polícia do Distrito Federal. Tive contato com o delegado e o promotor. Confio no trabalho deles. Nós nos colocamos inteiramente à disposição para colaborar.
Qual o andamento das ações contra a indústria internacional de órteses e próteses nos EUA?
De 11 ações, nós já tivemos cinco pedidos de acordo. É muito bom. Qual é a nossa condição sine qua non: parar de pagar propina. Ela encarece o produto e estimula as intervenções desnecessárias. A pessoa é submetida a uma cirurgia sem necessidade. O cara trata como funilaria. É um parafuso a mais, um a menos. Mas um parafuso a mais que um médico coloca são R$ 4 mil no bolso dele. Agora, olha o incômodo que é um parafuso na coluna.
Quais foram as cinco empresas internacionais que toparam a conciliação?
Eu posso dizer que temos duas negociações em pauta muito avançadas, que são a Medtronic e a Biotronic. Elas são globais, enormes. Mas o importante a anunciar é que é um fato inédito na história mundial, em que uma associação vai no coração do problema. E vai mudar.
Como funciona a prática da propina em outros países?
Você tem um problema grave na União Europeia. Por exemplo, a Grécia admite. Outros países europeus, não. Os EUA, não. No Brasil, não tem uma legislação específica. Tem um projeto de lei que vai criminalizar isso agora. Nosso projeto não é buscar dinheiro. Dinheiro é fácil. Você chega a uma indústria dessa e fala: eu quero US$ 10 milhões. Eles te dão. Nós queremos a solução. E o requisito fundamental do nosso acordo é: “Não pague propina”.
O livro propõe 10 práticas para evitar as fraudes. O que você acha prioritário?
A segunda opinião médica e a questão da criminalização da propina. A tipificação no Código Penal. Porque médico tem medo. Agora, vai aí um desafio: governo do Brasil, tome providência… Não interessa o que o país está vivendo. O que é mais interessante é o Congresso Nacional ou são as vidas que estão morrendo? Cansei de falar com o ex-ministro Chioro (Arthur), que, por nada, virou meu inimigo. Cansei de mostrar para ele as provas. O ministro Ricardo (Barros) parece que tem boa vontade, tem ideias. Então, meu apelo: governo brasileiro, venha conosco. Vamos falar com o secretário de Justiça americano. Porque a Justiça americana está de olho nisso.
Se você leva uma autoridade, é um reforço…
Muda tudo. Basta o ministro da Justiça ir junto. Agora, por que o governo do Brasil é frouxo? Prefere ficar no lá lá lá lá. Só que o ministro da Saúde precisa saber que ele tem teto de gastos, e 30% do que se gasta na saúde do Brasil hoje, seja público, seja privado, é desperdício, incluindo a máfia das órteses e próteses. O governo está deitado em berço esplêndido. Eu espero que os ministros da Justiça e da Saúde saiam desse berço esplêndido em que estavam o José Cardozo e o Chioro. Eles estão tendo as mesmas atitudes.
Os conselhos de classe, como os Conselhos Regionais de Medicina, têm ajudado?
Eu desafio os conselhos regionais de medicina e o Conselho Federal de Medicina. Que eles me mostrem, não as punições, mas os arquivamentos. O Brasil vai ter um choque.
De todas as máfias citadas no livro, alguma teve punição exemplar?
Não. Nem administrativo, nem penal. Eu quero que eles (conselhos de classe) tenham a coragem de mostrar quantos processos estão nos escaninhos dos conselhos regionais, do conselho federal. A parte penal também não andou. Mas a Abramge tem uma iniciativa particular. Nós vamos processar mais de 100 médicos no Brasil criminalmente. Já estamos preparando, com os dossiês. Porque médico bandido tem que ir para a cadeia. E hospital corrupto tem que ser fechado.
E desses 100, tem algum de Brasília?
Claro que tem. Mas não posso dizer mais nada.