Há alguns anos, recebi uma paciente que trazia no peito um enorme remorso, o de não conseguir sentir tristeza pela morte da própria mãe. E, pra complicar ainda mais, ela não se conformava com a morte da sua cachorrinha, ocorrida na mesma época. Só que a mãe tinha sido péssima, capaz de atitudes terríveis, incapaz de disfarçar o ódio que tinha da filha. E a cachorrinha tinha sido a grande companheira, pura fonte de amor. Assim, os sentimentos dela pela morte da mãe e da cachorrinha eram compatíveis com as relações vividas com as duas. E, com o processo terapêutico, ela conseguiu se libertar daquele peso de consciência e também perdoar a mãe.
Em consultório, temos contato com muitas histórias tristes, mas não há nada pior do que as que envolvem ódio de uma mãe contra um filho ou filha. Porque o que se espera de uma mãe é que ela ame, acolha, proteja. E é extremamente difícil para essa criança se transformar num adulto que consiga enxergar a mãe como alguém despreparado, que cometeu erros e até crimes, mas que, mesmo assim, foi o melhor que conseguiu ser. É extremamente difícil se desvencilhar dessa rede de incompreensão, incredulidade, revolta, tristeza, mágoa. Mas não é impossível e, acima de tudo, é absolutamente indispensável.
E foi dessa paciente que me lembrei quando li o texto abaixo, da SHEILA CAMPOS. Um texto lindo, comovente, que fala de ódio e de mágoa, que pode ajudar muitos outros filhos e, sem dúvida nenhuma, quem é ou pretende ser mãe.
Obrigada, Sheila, por me permitir publicar aqui a sua confissão. E parabéns pela coragem de encarar seus espectros. É assim que devemos lidar com o que nos assombra, tirando dos porões da mente e trazendo para uma varanda cheia de frescor e luz. Você está no caminho certo. Quando menos esperar, todos esses fantasmas estarão descansando em paz, com a sua compreensão e, porque não dizer, com a sua bênção!
CONFESSIONAIS
(texto em construção)
“Minha mãe faleceu no dia dois deste mês. Não nos relacionávamos bem. Minha mãe foi daquela geração de mulheres oprimidas, que reproduziam/reproduzem o machismo, e que muitas violências deve ter sofrido nesta vida.
Violências sofridas – violências reproduzidas.
Tornei-me feminista mais por causa de minha mãe que por culpa de meu pai (este, um capítulo à parte). O “ideal romântico” a enganou redondamente e frustrou, e desde que me conheço por gente ela vivia “furiosamente insatisfeita”.
Infeliz e impotente: dependente financeiramente do marido, nunca ousou confronta-lo, e a raiva de cada nova traição era canalizada para um ódio mal disfarçado pela filha identificada com o pai, de espírito livre e… que garantia desde os dez anos que não queria casar. Não há como descrever cada difamação, a desagregação diuturnamente “cavada”, o olhar raivoso, a maledicência, as surras…. Sintetizo exemplificando: uma das agressões quebrou meus dois braços de uma só vez; outra, queimou meu rosto com água fervendo.
Em nenhuma das duas vezes houve um motivo. Na segunda, inclusive, eu estava dormindo (!).
Por que conto isso: porque uma chaga sobre a qual o sistema patriarcal se alicerça é o ódio entre mulheres. Sim, isso é sabido; mas uma variação desse mal é o ódio de mães por suas filhas. Ou o colocamos, também, em pauta, ou nos cansaremos de ver meninas espancadas até alquebrarem, meninas estupradas com a omissão da mãe, meninas entregues (!) para serem abusadas, e o que nem sei, mais, enumerar…
A desagregação “construída” por mais de trinta anos é irremediável. A maledicência que coloca contra você as irmãs das quais você cuidou toda a sua infância – das quais trocou fraldas, fez mamadeiras, deu papinhas, foi responsável por entreter, carregar, proteger todo o tempo em que você mesma não estava na escola, para liberar os adultos -, este veneno injusto, unilateral, perverso, incultido subreptícia e incessantemente, ou aberta e escandalosamente… -, essa ferida não cura.
Ao contrário: infelizmente, o trauma se reaviva a cada mulher contra a qual não fiz absolutamente nenhum mal e que é envenenada contra mim.
Não sei se é luto, não sei o que é esse mal estar. Afogo no que preciso transmutar silenciosa, indescritivelmente. Asfixio, me debato, submerjo em pesadelo;
Meus fantasmas nunca descansaram…”
Sheila Campos é existencialista, FEMINISTA, passional, obsessiva, ANTICAPITALISTA, anarquista, pela libertação animal.
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