Recebo muitas piadas via WhatsApp. Afinal, somos um povo criativo e espirituoso. Mas algumas ridicularizam negros, homossexuais, nordestinos, homens-bomba, evangélicos, mulheres gordas. E por aí vai.
Umas não mais me fazem rir e as deleto no ato. Outras eu também apago sem repassar, mas ainda rio delas, o que é horrível. E confesso que já compartilhei muita coisa tosca, o que é pior do que horrível.
Do que isso se trata? Necessidade de afirmação de uma suposta superioridade social ou intelectual? Incapacidade de lidar de maneira adulta com as minhas próprias dificuldades ou medos? Tudo isso e uma boa dose de ignorância, de imbecilidade por mim ainda não superada?
A verdade é que estamos muito longe de sermos justos e livres como nos vemos, como gostaríamos. São raros os emocionalmente amadurecidos o bastante para não se deixarem prender no visgo do preconceito, da ridicularização alheia, por mais elaborada que a piada seja.
Pegando o racismo que discrimina os negros como exemplo, o Brasil evoluiu muito nesse aspecto, graças à luta corajosa de gente, negros na maioria, que fez e faz a diferença, que busca maneiras de amenizar os estragos de anos de escravatura, uma reparação histórica imprescindível.
Mas, na semana passada, vazou um vídeo em que o jornalista da Rede Globo William Waack, pouco antes de ir ao ar, sem saber que estava sendo gravado, proferiu vários palavrões e expressões racistas contra alguém que passava na rua buzinando.
Waack teria comentado não se lembrar de ter dito aquelas coisas. Embora isso seja irrelevante, eu acredito. Na gravação, ele se expressa com muita naturalidade, como alguém habituado a falar daquele jeito e receber apoio ou não ser contestado. Reagir daquela forma à buzinação me pareceu tão corriqueiro pra ele, que nem mereceria espaço na memória. E foi também por isso que as pessoas se escandalizaram.
Desde que o vídeo veio a público, William Waack vem sendo linchado nas redes sociais, mas também defendido por pessoas que acham um exagero o que está acontecendo. Só que essas, na maioria, não refutam o levante contra a demonstração de racismo por parte dele, mas a forma como alguns internautas têm se manifestado.
Tenho lido comentários de gente que está amaldiçoando o jornalista, seus amigos, colegas de profissão e de trabalho, e a própria Rede Globo. De gente que diz que ele precisa ser banido do jornalismo, definitivamente impedido de expressar qualquer opinião na mídia, por ser alguém desprezível.
E também vi manifestações de pessoas que dizem não ver mal nenhum no que aconteceu, que o politicamente correto é detestável, que as pessoas têm que ter liberdade para se expressar, que ninguém pode ser obrigado a gostar de negros. Entre esses dois extremos, está rolando de tudo.
Se sairmos perguntando a pessoas brancas se elas são racistas, elas responderão, sem pestanejar, que não. Se as confrontarmos, chamando a atenção para o uso de expressões como a utilizada por Waack, provavelmente dirão que essas ocorrências não têm nenhuma importância, são só farra, só de onda, que, na vida real, elas não olhariam negros com arrogância ou lhes dariam tratamento diferente do que dispensam aos outros brancos.
Mas, se fazemos piadas ou comentários como o que William Waack fez, é porque há algo de podre em nosso íntimo, que podemos até nos esquivar de chamar de racismo, mas é racismo, mesmo que o contexto seja engraçado, mesmo que os gracejos se dirijam a negros “habituados ao nosso jeitão, que não se sentem ofendidos”.
Faço questão de repetir que o racismo é inaceitável, vergonhoso, criminoso! Assim como outros preconceitos também o são. Mas não estou atirando pedra em Waack. O que aconteceu com ele poderia ter acontecido comigo ou com qualquer outra pessoa. Não me vejo usando expressões racistas, mas me vejo dizendo outras merdas preconceituosas.
Porque pode ser que não tenhamos mais um ou outro preconceito, mas ainda temos muitos. Pode ser que alguns já tenham sido bem trabalhados, mas ainda somos preconceituosos, todos, uns mais, outros menos, mas todos.
Só que isso não significa que o comportamento dele seja aceitável. De jeito nenhum! Nenhum tipo de preconceito, seja ele qual for, venha de quem vier, é plausível, em nenhum contexto!
Não faz muito tempo, fazer piadinhas como a de William Waack era considerado bobagem. Mas o mundo mudou pra melhor e isso agora é condenável. Porque essas gracinhas são de uma maldade assustadora, têm um poder de destruição que a maioria das pessoas não percebe. Às vezes nem mesmo o alvo do abuso se dá conta da perversidade ali contida, mas nem por isso há um arrefecimento desse mal, do estrago.
Racismo não combina com ninguém, muito menos com pessoas com um mínimo de decência, de humanidade. E precisamos expurgar os ranços que acreditamos bem guardados e inofensivos. Não adianta só construirmos uma fachada. Precisamos olhar pra dentro de nós e buscar entender o que nos leva a pensar, a falar, a agir de maneira muitas vezes abominável.
O que aconteceu a Waack me acertou em cheio e serviu como importante lição. Espero que também pra ele e pra todos os que tomaram conhecimento dessa história, principalmente para quem anda defendendo que o comportamento chamado “politicamente correto” é um exagero, uma grande babaquice, invenção de gente que não tem o que fazer, pra tirar a liberdade dos outros.
Chegará o dia em que não mais haverá a necessidade de termos o marcador “politicamente correto”, porque já seremos “humanamente corretos”. Mas, até lá, ele é uma muleta da qual não podemos abrir mão sem o risco de retroceder.
Li que William Waack estava para assumir um novo cargo e que teriam feito isso pra puxar o tapete dele. As razões podem não ter nada a ver com o racismo do jornalista. Quem fez isso pode até também ser racista. Mas, verdade ou não essa conversa, as pessoas efetivamente só têm o poder que damos a elas.
Se Waack não tivesse nem o ranço do racismo, não teria dito o que disse e talvez não estivesse sobre nenhum tapete que pudesse ser puxado. Portanto, ele não foi derrubado por outra pessoa, mas pela própria maneira de pensar.
Lembram de “O preço da liberdade é a eterna vigilância”? Muita gente acha que, para manter a liberdade, precisamos estar sempre ligados, de olho nos outros, em seus movimentos, vigiando os puxadores de tapete da vida.
Mas quem quiser ser realmente livre deve vigiar os próprios pensamentos, porque são eles a fonte dos nossos sentimentos e o combustível para o que dizemos e fazemos. Esse é o preço da liberdade.
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