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CANTO CHORADO

Publicado em crises conjugais, Democracia e ditadura, dores emocionais, Espiritualidade, Filosofia, Psicologia, Relacionamento abusivo, Relacionamento amoroso, Relacionamentos tóxicos, Violência doméstica

No último 8 de dezembro, rebeldes liderados pelo grupo Hayat Tahrir Al-Sham (HTS) tomaram Damasco, capital da Síria, e arrombaram as portas da prisão militar Saydanaya, onde se acredita que foram executados milhares de apoiadores da oposição ao regime do ditador sanguinário Bashar al-Assad, que havia sucedido o próprio pai no poder, garantindo, para sua família, a autoria de 50 anos de terror no país. Segundo a CNN, durante essa última guerra civil, cerca de meio milhão de pessoas foram mortas e 12 milhões foram forçadas a fugir de casa, inclusive para o exterior, em busca de asilo.

 

Pouco antes da última ofensiva dos rebeldes, parecia que o ditador, que contava com o apoio da Rússia e do governo e milícias do Irã, havia vencido a guerra. Mas ele perdeu e fugiu. Como teria sido dito pelos rebeldes, após meio século de opressão, chegou ao fim o período de sombras e teve início uma nova era para a Síria. Assim, muitos países se apressaram em suspender a análise dos pedidos de refúgio feitos por sírios, mas, como dito pelo enviado especial da ONU, Geir Pedersen, deve haver cautela nos processos de repatriação porque a situação naquele país ainda é instável.

 

Essa preocupação tem a ver com o próprio HTS que, quando criado em 2012 com o nome Frente al-Nusra, jurou lealdade à Al-Qaeda. E, não obstante o rompimento em 2016 e a mudança de nome, sua origem jihadista levou a ONU, os EUA, o Reino Unido e vários outros países a olharem o grupo com desconfiança e a declararem seu líder como um terrorista global. Assim, os sírios, uma vez que agora podem, devem comemorar. Ter o que comer, mesmo que precariamente, poder libertar e até mesmo enterrar parentes há muito desaparecidos é extremamente importante. Mas isso é só o primeiro passo na direção de um novo rumo. Mesmo com o coração fervendo em revolta e clamando por justiça, aquele povo precisa ter a cabeça fria.

 

E essa situação me fez lembrar de uma paciente que percorreu um caminho bem diferente na solução dos problemas que vinha há muito enfrentando no casamento. O que ela fez exigiu leitura de cenário, planejamento, força de vontade e cabeça muito fria, apesar do coração dilacerado por uma relação que, no começo, parecia de amor, mas logo mostrou-se ditatorial.

 

Ela era uma adolescente muito bonita de família bem pobre de periferia. Era praticamente um bichinho do mato quando conheceu um homem quase 20 anos mais velho que se encantou com ela e logo a pediu em casamento. E esse homem abriu, pra ela e pra família dela, um mundo não de luxo, mas de comida na mesa todos os dias. Um verdadeiro salvador da pátria! Todos sabemos como é importante ter o que comer. Mas só quem já passou fome sabe o quanto. Algo como a tomada do poder pelo HTS que, de cara, trouxe pão e gás para que o povo sírio pudesse voltar a ter esperança na vida. As imagens mostram pessoas maltrapilhas, com o olhar sofrido, mas firmes nas filas, prontas para recomeçar.

 

No começo do casamento, tudo correu bem. Morar numa casa, não num barraco, e saber que sua família estava tendo o que nunca nem havia sonhado era maravilhoso. Ela estava feliz e agradecida, mesmo não tendo se casado para isso, mas por amor, por tanto admirar aquele homem inteligente e generoso que ele se mostrava. Para ela, ele era um herói, um salvador, como muitos sírios devem estar enxergando o HTS neste momento histórico.

 

Só que, com o passar dos anos, ela começou a desejar fazer uma faculdade, trabalhar fora. Mas o marido não aceitava nem que ela estudasse nem que trabalhasse, alegando que ele estudava e trabalhava pelos dois e que jamais faltaria nada a ela, nem quando ele morresse. Além do mais, dizia ele, ela havia estudado sempre em escola pública rural, tinha concluído um Ensino Médio sofrível, não tinha profissão, não conseguiria nenhum emprego que prestasse e ganharia muito mais cuidando da casa e dele.

 

E quando ela quis ter um filho, ele foi categórico ao dizer que, além de colocar em risco a beleza do próprio corpo, ela terminaria deixando-o de lado para dar atenção à criança. Ter um pet? Nem mesmo um peixinho de aquário! E, apesar da insistência dela, e talvez exatamente por isso, tocar nesses assuntos foi por ele proibido. Ela vivia à disposição dele, sem direito a realizar um único sonho além daquele de ter o que comer, mal visitava a família, não tinha amigos, e, pouco a pouco foi se transformando numa sombra.

 

Até que ela apareceu no meu consultório para conhecer o grupo de terapia PARA SOBREVIVER A UM GRANDE AMOR, exatamente em um dia em que falei sobre depressão. E, diferentemente do que costuma acontecer com pacientes deprimidos, ela imediatamente procurou ajuda psiquiátrica e iniciou um tratamento, mantendo-se firme também no grupo. A vontade dela era romper com aquele homem que nunca a enxergara de fato como pessoa, como mulher, mas quase como um troféu. Ela só queria deixá-lo. Mas, para ela, pior do que tudo era voltar a passar fome. Então, eu lhe expliquei que, uma vez que ela não corria risco de violência física ou morte, deveria, antes de qualquer decisão, procurar entender o que realmente estava acontecendo na sua vida.

 

Não demorou muito para que ela decidisse que voltar a passar fome estava fora de cogitação, mas que essa decisão não a iria paralisar. Ela entendeu que o marido, embora fosse uma boa pessoa, mesmo tendo socorrido ela e a família, não a tratava amorosamente e ela esperava, de um casamento, muito mais do que segurança alimentar; que não ter tido filhos com ele tinha sido até bom porque ele não tinha condições emocionais para ser um bom pai; e que a boa situação financeira que ele havia conquistado por mérito, mesmo que ele a tenha usado para mantê-la cativa, poderia ser pra ela uma luz no fim do túnel. E ela decidiu estudar para concurso público em busca de um emprego que lhe desse independência financeira e segurança.

 

Sem que ele imaginasse, matriculou-se em um curso preparatório e assistia às aulas pelo celular, inclusive enquanto limpava a casa, lavava a roupa, cozinhava. Ela se agarrou àquela oportunidade de tal forma, com tanto afinco, com tanto foco que, quando surgiu um concurso que poderia lhe dar o que buscava, ela fez as provas, passou e foi bem classificada. Sabendo que logo seria chamada, procurou uma advogada em busca de orientação acerca de separação de corpos e divórcio, organizou-se para ter onde ficar caso fosse preciso deixar a casa e, no dia em que ela tomou posse, ele foi surpreendido com uma ligação da advogada dela. Ela só queria o divórcio, não queria pensão.

 

Claro que o problema da Síria não vai se resolver de maneira tão simples. O Oriente Médio definitivamente não é para amadores, mas é composto por países formados por pessoas que podem e devem encontrar maneiras de assumir as rédeas da própria existência. O caso dessa minha paciente é inspirador porque ela teve inteligência para buscar e receber ajuda e porque usou, para superar um drama pessoal, o autoconhecimento e a Educação, que as traças e a ferrugem não consomem; os ladrões não furtam nem roubam; e ditador nenhum, nem mesmo da pior espécie nem mesmo o mais íntimo, pode sobrepujar, por serem tesouros imunes até à morte do corpo.

 

Deus permita que o HTS faça um trabalho maravilhoso na Síria. E Deus permita que os sírios finalmente encontrem a paz e a aproveitem da melhor forma porque, assim como a minha paciente, um povo precisa de muito mais do que ter a fome saciada, precisa construir a própria vida, alegrando-se com os acertos e refazendo os passos nos erros, deixando de lado a ideia de salvadores que devem decidir tudo em nome de todos como se fossem os donos da verdade. Porque, como diz a música CANTO CHORADO, de Billy Blanco, o que dá pra rir dá pra chorar.

 

A imagem da foto é de Omran Daqneesh, um menino que tinha apenas 3 anos e se tornou símbolo do sofrimento da cidade síria de Alepo. Ela foi tirada há 7 anos e correu o mundo. O garotinho agora está bem.

 

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7 thoughts on “CANTO CHORADO

  1. Fernando via WhatsApp: Boa tarde! Texto muito bom para a gente refletir. Já são décadas que vimos aquela região do planeta nos mostrar sofrimentos de povos inteiros. Uma tristeza. Já o exemplo da jovem, muito inspirador.

  2. Muito boa a reviravolta da moça casada.É preciso de ter foco para não cair nos mesmos erros.A moça lutou por uma vida mais digna. O povo da Síria terá que ter foco também ,pois lá tem muito extremistas o que pode dificultar esse processo para se erguer.

  3. Nelson Monteiro via WhatsApp: Oi Maraci, parabéns pelo seu Niver e que vc continue com suas crônicas maravilhosas! 😄😄😄😄👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

  4. Regina Coeli via WhatsApp: Excelente colocações como sempre é inspiradora. Enviei para várias mulheres e homens. Tenha uma linda noite de bom descanso ❤️

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