Cuidado é Questão de Gente

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Ana Castro & Cosette Castro

Brasília – Embora muita gente tenha sido educada para pensar ao contrário, cuidado não é algo inato. Não nasce no feminino, embora  mulher e cuidado no Brasil sigam sendo considerados quase como sinônimos.

Nos séculos XX e XXI nossas gerações viram as mulheres sendo “incentivadas” a cuidar da casa e dos familiares e milhares de propagandas, filmes e livros reforçando a ideia de que o cuidado tem gênero (feminino). Homens iam para a rua e mulheres ficavam em casa.

O mundo mudou com a ajuda das mulheres que foram para a rua reivindicar direitos. Apesar das mudanças, a ideia do cuidado como algo intrínseco ao feminino, seguiu firme.  A ideia se propagou e multiplicou  até que se tornasse algo “natural” em nossas vidas (assim como casar, ter filhos ou, até os anos 60/70, não trabalhar fora de casa para não “descuidar” a família).

A ideia de que as mulheres “nasceram para cuidar”  sobrecarrega a mulher. Também alimenta a economia do cuidado, envolvendo valores na casa dos trilhões de dólares ao ano. Ou seja, o que fazemos gratuitamente por amor ou  obrigação como cuidadoras familiares vai além do âmbito da família e da porta da casa.

No âmbito privado é um trabalho gratuito onde  os demais componentes da família em geral deixam de se sentir de responsáveis pelo cuidado quando apenas uma pessoa assume a responsabilidade.

No âmbito público, coletivo, significa uma economia de algo em torno de 10,8 trilhões de dólares para os governos de diferentes países, como revela o relatório da ONG Oxfam (2020). Ao trabalharem gratuitamente no cuidado familiar as mulheres contribuem à economia global, e para o  governo brasileiro que deixa de se responsabilizar pelo cuidado coletivo da população.

O cuidado por amor ou obrigação fez com que mulheres e meninas dediquem 12,5 bilhões de horas todos os dias ao trabalho de cuidado no mundo em 2020. Gratuito ou de baixíssima remuneração Ou seja, mulheres e meninas são responsáveis por mais de 3/4 do cuidado não remunerado realizado no mundo. A atividade de cuidado começa por volta dos 14 anos e segue por toda vida, mesmo depois dos 60 anos.

Isso tem implicado para as mulheres  uma carga de responsabilidade multiplicada,  que inclui a organização da casa, cuidado com a alimentação, educação dos filhos e saúde de toda família. Ou seja, com sobrecarga física e mental  diária.  E pouco tempo para o lazer e o autocuidado.

Como passar de uma sobrecarga de cuidado para a responsabilização do cuidado como algo pertencente à família, ao grupo, que pode e deve ser divido e compartilhado?

Não é algo fácil. porque não ocorre apenas no nível racional. A ideia de ser cuidadora ou “salvadora da família” pode seduzir algumas pessoas.  Algumas vezes, o perfeccionismo da ideia de “cuidar bem” não permite que outras pessoas se aproximem, porque não vão cuidar “da mesma forma” que a cuidadora familiar faria. Abrir mão é difícil. Aceitar ajuda pode ser difícil  também.

Em outras pessoas, a ideia de que um homem possa cuidar bem, gera brincadeiras e comentários negativos que afastam alguns homens nas primeiras tentativas. Até porque eles  não foram educados para cuidar como as meninas. (quantos brinquedos de boneca, casinha, e equipamentos da casa você deu ao seu filho, sobrinho, afilhado ou neto?).

Quantas vezes você estimulou que meninos da sua família cuidassem de crianças pequenas por alguns momentos, dividissem tarefas domésticas ou considerassem natural organizar a casa, preparar pequenas refeições e limpar tudo depois?

Quando uma criança cresce vendo apenas a mãe (ou outra mulher responsável)  fazer a comida, lavar e passar a roupa, cuidar da casa, trocar fraldas de crianças ou de familiares idosos,  vai crescer imaginando que isso é “natural”. Que o cuidado é uma atividade das mulheres.

Além das necessárias campanhas públicas para reduzir o preconceito e estimular o cuidado intergeracional, sugerimos dar um passo atrás e (tentar) mudar. Com pequenos gestos, incluindo o cuidado coletivo na família  desde cedo ou tardio (agora). Uma sugestão é incentivar meninos, meninas e adolescentes à naturalização do cuidado. Ao respeito e a gentileza em todas as fases da vida.

Praticar  autocuidado não é um favor por horas de trabalho gratuito. É um direito humano. Cuidado não é constituinte do feminino nem responsabilidade unilateral. Todas e todos temos direitos de ofertar cuidado, a sermos cuidadas e ao autocuidado.

Cuidado não é uma questão de gênero. É uma questão de gente.

Cosette Castro

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