Clayton Germano
Clayton Germano Crédito: Gustavo Moreno/CB/D.A Press Clayton Germano

Promotor do MPDFT analisa vetos de Lula a alterações na Lei da Ficha Limpa

Publicado em Eixo Capital

Confira entrevista com Clayton Germano, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT):

Do que tratam os vetos do presidente Lula à lei que alterou a Lei da Ficha Limpa?

Alguns dispositivos que permitiriam a aplicação imediata das mudanças a fatos passados ou processos já transitados em julgado foram vetados pelo Presidente da República, com base em argumentos de segurança jurídica, isonomia e respeito à coisa julgada. Um dispositivo que fixava como termo inicial da contagem a “data da eleição” em que ocorreu o abuso foi vetado, porque poderia gerar tratamento desigual entre candidatos em situações semelhantes. Apesar das mudanças, entidades de controle social como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) consideram que, no núcleo, a nova lei representa um enfraquecimento da moralidade eleitoral e maior risco de retorno de pessoas condenadas às disputas políticas.

Quais os principais pontos?

Antes: por exemplo, a inelegibilidade começava a contar do fim do mandato ou do cumprimento da pena. Agora: há “janela fechada” — prazo certo, teto máximo, marco para início da contagem. A lei busca dar maior segurança jurídica, mas as alterações reduzem o rigor da Lei da Ficha Limpa.

Os argumentos de quem apoia essas mudanças são de que as penas impostas a condenados ultrapassam muito o razoável porque duram o tempo do processo mais oito anos. Como avalia isso?

A Lei Complementar n. 219/2025 é um o retrocesso ético da Lei da Ficha Limpa. Os defensores da Lei Complementar 219/2025 afirmam que as alterações promovidas na Lei Complementar 64/1990 tornariam o sistema mais “justo”, sob o argumento de que as penas de inelegibilidade anteriores extrapolavam o razoável, uma vez que poderiam durar o tempo do processo somado a oito anos. Entretanto, tal justificativa não se sustenta à luz de uma análise comparativa entre as consequências impostas aos diversos tipos de crimes e à gravidade social dos atos de corrupção e improbidade administrativa. Um homicídio qualificado, por exemplo, tem pena de 12 a 30 anos de reclusão. O feminicídio, expressão máxima da violência de gênero, pode chegar a 40 anos de prisão. Até mesmo delitos de natureza econômica menos gravosos, como adulteração de bebidas, podem alcançar pena de até 8 anos de reclusão. Ora, diante disso, soa profundamente desarrazoado que um agente público condenado por desviar milhões de reais da merenda escolar, da saúde pública ou da previdência de aposentados — condutas que comprometem a vida e a dignidade de milhares de pessoas — fique inelegível por, no máximo, 12 anos, conforme a nova redação da LC 219/2025. A incoerência é evidente: pune-se o cidadão comum, especialmente o pobre, com décadas de reclusão por um crime individual, enquanto o político corrupto, cujo ato destrói políticas públicas e vidas inteiras, é “reabilitado” em poucos anos para retornar à vida política. Essa disparidade fere de morte os princípios da moralidade e da probidade administrativa, consagrados no art. 37 da Constituição Federal, e representa um inaceitável retrocesso frente ao avanço ético trazido pela Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), construída sob o clamor popular e o princípio republicano da igualdade. Se a verdadeira finalidade da inelegibilidade é proteger a sociedade e o patrimônio público de agentes ímprobos, então a justiça social exigiria que o político corrupto fosse afastado por igual período — até 40 anos, como se faz com o autor de um feminicídio. Condenar o pobre a 40 anos de prisão e permitir que o rico e poderoso retorne ao poder após 12 anos é perpetuar a desigualdade e a impunidade que corroem as instituições. Em vez de um avanço, a LC 219/2025 retalha a Lei da Ficha Limpa, fragiliza a moralidade administrativa e reforça o abismo entre o Brasil da lei escrita e o Brasil real — aquele em que a punição ainda é medida pelo tamanho da conta bancária e não pela gravidade da ofensa à sociedade.

O ex-juiz Marlon Reis, um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, chamou as mudanças de “anistia camuflada”, argumentando que podem permitir que políticos condenados retornem prematuramente à disputa eleitoral. Concorda?

Concordo integralmente com as afirmações do ex-juiz Marlon Reis. De fato, as alterações promovidas nessa norma fragilizam os pilares éticos que sustentam a Lei da Ficha Limpa, ao reduzir de maneira artificial e injustificável o período de inelegibilidade de políticos condenados, abrindo caminho para o retorno prematuro de pessoas já reprovadas pela Justiça Eleitoral à disputa política. Trata-se, portanto, de um retrocesso institucional grave. A Lei da Ficha Limpa é um marco na história republicana recente, não apenas por seu conteúdo moralizador, mas também por sua origem democrática inédita. Ela figura entre os raríssimos exemplos de lei de iniciativa popular efetivamente aprovadas desde a promulgação da Constituição de 1988, resultado direto da mobilização cidadã de milhões de brasileiros que, exercendo o poder político previsto no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, exigiram do Estado maior probidade na vida pública.

Avalia que a lei é inconstitucional?

A Lei Complementar 219/2025 é formal e materialmente inconstitucional. Formalmente, porque foi proposta e aprovada com vício de iniciativa. Materialmente, porque viola e afronta o princípio republicano, os valores da moralidade, da probidade e da separação dos poderes, previstos nos artigos 14, §9º, e 37, caput, da Constituição, bem como o próprio espírito ético do constitucionalismo de 1988. Mas o maior vício da nova lei seja de falta de legitimidade democrática. Ao alterar um diploma normativo nascido da soberania popular, o Congresso Nacional desrespeitou o fundamento da própria democracia brasileira: o povo como titular originário do poder. A Lei da Ficha Limpa só poderia ser modificada por outra lei também de iniciativa popular, emanada diretamente da cidadania, em respeito ao princípio da participação direta consagrado pela Constituição. Em suma, a Lei Complementar 219/2025 não apenas viola normas constitucionais expressas, como fere o pacto democrático de 1988. Corrigir seus efeitos é uma exigência jurídica, mas sobretudo um dever ético diante da sociedade brasileira que, uma vez, fez ouvir sua voz contra a impunidade.

Qual é o efeito prático dessas mudanças para as próximas eleições ou para políticos que já foram condenados?

Em princípio, a lei não opera retroativamente para reduzir automaticamente os efeitos para condenações já transitadas ou para casos em andamento. Várias decisões do TSE e STJ indicam que a regra da irretroatividade a leis eleitorais, quando mudam regras de inelegibilidade, vige. Como parte do texto da lei, foi vetado o dispositivo que expressamente exigia aplicação imediata às “condenações e fatos pretéritos”. Ou seja: o presidente vetou parte do projeto que pretendia tornar automaticamente aplicável à casos antigos. Em resumo: quem já foi condenado ou teve mandatos cassados sob a legislação anterior não pode contar, automaticamente, com que a nova lei torne sua inelegibilidade mais curta ou gere efeitos “mais benéficos” — ao menos até que o tema seja clarificado por jurisprudência ou interpretado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

No caso do ex-governador José Roberto Arruda, como fica?

O ex-governador José Roberto Arruda alega que a nova LC 219/2025 unificaria prazos ou reduziria sua inelegibilidade. Mas isso não valerá para condenações anteriores ao novo marco, por força do princípio da segurança jurídica e da coisa julgada. Como dito acima, a regra da irretroatividade a leis eleitorais, quando mudam regras de inelegibilidade, vige.

Advogados da Operação Caixa de Pandora sustentam que o Ministério Público alega conexão entre as ações de improbidade contra os réus desse caso para pedir prevenção na Justiça. Pode explicar se isso beneficia Arruda?

O ex-governador José Roberto Arruda e sua defesa técnica estão errados. Durante o curso dos processos eles sempre alegaram que o Juízo da 2ª Vara de Fazenda Pública não era competente para julgar as ações de improbidade da Operação Caixa de Pandora; sempre afastaram a tese de conexão entre as ações, para afastar a competência da 2ª Vara de Fazenda Pública; mas, agora, quando lhes convém, alegam que há conexão entre as ações. Proposital e intencionalmente, eles tentam confundir conexão entre as ações com conexão probatória — são dois institutos jurídicos distintos. O Ministério Público sempre defendeu a conexão probatória, nos termos do artigo 55, parágrafo 3°, do Código de Processo Civil, motivo pelo qual a 2ª Vara de Fazenda Pública é a competente para julgar as ações de improbidade da Operação Caixa de Pandora. Lembre-se que a Operação Caixa de Pandora nasceu no Inquérito 650 do STJ, no qual foram colhidas as provas consideradas válidas pelo STF, STJ e TJDFT (como, por exemplo, a prova da interceptação ambiental, em que o ex-governador José Roberto Arruda trata da divisão de dinheiro público desviado com o colaborador premiado Durval Barbosa). Inquérito 650 foram feitas as buscas apreensões. Por isso há conexão probatória, mas, repita-se, não há conexão entre as ações em que o ex-governador José Roberto Arruda foi condenado. As inúmeras ações de improbidade que lhe foram propostas versam, em regra, sobre contratos distintos, fatos específicos e pedidos diversos, apesar da prova comum. Cada ação aponta causas de pedir próprias — fatos e fundamentos ad hoc ligados a um determinado instrumento contratual e atos administrativos diversos. Nessa hipótese não há, em cada uma das ações, comprovação de pedido comum (mediato e imediato) nem de causa de pedir comum (remota e próxima) que autorize tratá-las como “conexas” nos termos do art. 55 do CPC.