Última obra de Oscar Niemeyer inaugurada em Brasília, a Torre Digital, também chamada de Flor do Cerrado, está no centro de um processo judicial que envolve até mesmo denúncias contra o arquiteto, morto em 2012. O Ministério Público do Distrito Federal acusa ex-diretores da Terracap e a empresa Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer Ltda. de irregularidades na licitação para a construção do monumento. O MP alega que a inexigibilidade de concorrência pública para o projeto arquitetônico é prevista em lei, mas sustenta que houve dispensa indevida de licitação para os projetos complementares de engenharia, como a elaboração dos cálculos.
Oscar Niemeyer chegou a ser incluído na denúncia criminal apresentada em 2014 – dois anos depois de sua morte. Constatado o equívoco, o MP apresentou um aditamento da denúncia. Parentes e amigos do arquiteto reclamam das acusações, que consideram um desrespeito à memória de Niemeyer. Mas entidades de engenharia defendem a tese do Ministério Público e alegam que os projetos estruturais e de instalações deveriam ter sido licitados. O ex-presidente da Terracap Antônio Gomes, a ex-diretora da empresa Ivelise Longhi e o ex-procurador jurídico da companhia Vicente Jungmann foram alvo de denúncia criminal e também de uma ação de improbidade administrativa. A empresa que leva o nome de Oscar Niemeyer responde somente na esfera cível pelas mesmas acusações.
O contrato para elaboração do projeto da Torre Digital foi assinado em maio de 2008, durante a gestão do então governador José Roberto Arruda. Com base nesse acordo, o GDF repassou ao arquiteto R$ 2,5 milhões. A Lei de Licitações prevê a dispensa de concorrência pública em casos de contratação de profissionais com notória especialização – o que inegavelmente era o caso do arquiteto Oscar Niemeyer. “Ocorre, no entanto, que a proposta de prestação de serviços apresentada pela empresa contratada não se limitou à confecção de um projeto arquitetônico, mas apresentou também projetos de estrutura, de fundações e de instalações prediais, serviços típicos de escritórios de engenharia especializados”, alegou o promotor de Justiça Roberto Carlos Silva, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e Social.
Oscar Niemeyer, morto em dezembro de 2012, chegou a ser incluído na denúncia apresentada em 20 de novembro de 2014. Constatado o equívoco de ter denunciado um falecido, o MP aditou a denúncia duas semanas depois. Mas, no processo, o Ministério Público aponta o arquiteto como um dos responsáveis pelo suposto crime. Ele teria concorrido “decisivamente para a inobservância das formalidades dos procedimentos de inexigibilidade de licitação, beneficiando-se direta e indiretamente com a celebração e a execução do contrato administrativo”, diz um trecho da denúncia.
Sócio do arquiteto e até hoje à frente do escritório de Oscar Niemeyer, Jair Valera se revolta ao falar da denúncia. Ele lembra que o modelo de contratação casada dos projetos arquitetônicos e também estruturais foi seguido em todas as obras de Niemeyer construídas em Brasília, inclusive em prédios do Judiciário e do Ministério Público, como o Tribunal Superior do Trabalho e da Procuradoria-Geral da União, ambos projetados pelo arquiteto. “É um absurdo o que estão fazendo. Essa torre tem uma estrutura especial porque recebe uma forte carga de vento. Era preciso o trabalho de um engenheiro em quem o Oscar confiasse. Ele sempre trabalhou dessa forma”, diz Valera. “Essa denúncia foi um desrespeito tremendo, o Oscar não merecia passar por isso”, acrescenta o profissional.
Ex-diretor da Terracap, o advogado Antônio Gomes incluiu em sua defesa os contratos de obras realizadas por Niemeyer em Brasília, como as sedes da PGR, do TST, do TSE e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em todas elas, segundo Gomes, os órgãos públicos contrataram tanto o projeto arquitetônico como os complementares de engenharia sem licitação. “Nós, da Terracap, nos baseamos em todos esses precedentes, já que o próprio Niemeyer argumentava que, em sua obra, a arquitetura e a estrutura estavam sempre em simbiose”, explica. “Denunciar Oscar Niemeyer aos 104 anos, vivo, por um crime inexistente, seria uma heresia jurídica. Denunciá-lo morto é um sacrilégio contra a memória do arquiteto mais importante do planeta”, acrescenta Antônio Gomes. As defesas de Ivelise Longhi e de Vicente Jungmann também seguiram a mesma linha e se basearam no argumento de que a contratação com dispensa de licitação estava embasada na lei.
Antes de morrer, quando já havia questionamentos sobre o contrato, o arquiteto Oscar Niemeyer enviou uma carta à Justiça e ao Ministério Público. No documento, ele argumentou que o valor cobrado se baseou na tabela de honorários do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e do Instituto de Engenharia. “O caminho arquitetural é aquele da busca da surpresa, do vão audacioso, da integração entre arquitetura e estrutura. No projeto em tela, a arquitetura e a estrutura foram e tinham que ser concebidas em conjunto, rigorosamente em conjunto”, argumentou.
A ação penal já está na fase final e a 1ª Vara Criminal de Brasília deve concluir em breve a análise do caso. A audiência de instrução e julgamento está marcada para 7 de julho. O promotor Roberto Carlos Silva diz que está convicto das irregularidades apontadas. “O entendimento de que os projetos de engenharia podem ser licitados é do Tribunal de Contas da União. Há outros profissionais e empresas com capacidade de executá-los”, argumenta o promotor. Sobre o fato de a primeira denúncia ter incluído Oscar Niemeyer, Roberto Carlos garante que isso não atrapalha o andamento do processo. “Foi um mero equívoco, uma bobagem, e que foi rapidamente corrigido. O nome dele constou inadvertidamente porque já havia falecido. Mas, se estivesse vivo, certamente seria denunciado de fato”, acrescenta.
O chefe do Departamento Técnico do Conselho de Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea), Ramiro Ferreira de Souza Filho, defende os argumentos do Ministério Público. Na época da contratação, a entidade questionou a dispensa de licitação. “Para projetos de arquitetura, a inexigibilidade de licitação é possível, considerando-se a expertise do profissional. Mas com relação aos projetos complementares, eles têm que ser licitados. No caso da obra da Torre Digital, por exemplo, havia pelo menos 20 profissionais só no Distrito Federal com capacitação para fazer esses projetos”, diz Ramiro. “O promotor está corretíssimo em seus questionamentos porque a licitação jamais deveria ter sido dispensada”, acrescenta.