Documento interno sobre 8 de janeiro foi ocultado de Moraes pela PM do DF

Publicado em CB.Poder, Eixo Capital

Coluna Eixo Capital, publicada em 27 de dezembro de 2024, por Pablo Giovanni (interino)

Um relatório, considerado essencial para averiguar a postura dos integrantes do alto comando da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, foi ocultado do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes pela corporação. É o que mostram documentos exclusivos obtidos pela coluna.

Ao atender a uma determinação de Moraes, em junho de 2023, que solicitava “documentos, procedimentos, ordens de serviços, despachos ou quaisquer outros originados” após os eventos de 8 de janeiro, a chefia da Seção de Pessoal do 6° Batalhão — responsável pela Esplanada dos Ministérios e comandado na ocasião pela tenente-coronel Kelly Cezário — afirmou que não houve a produção dos referidos documentos após a elaboração do Protocolo de Ações Integradas (PAI) dos atos de 8 de janeiro.

Entretanto, foi emitido um relatório de 11 páginas relacionado aos atos antidemocráticos, elaborado logo após o ocorrido pelo comandante em exercício do batalhão, major Flávio Silvestre de Alencar. O documento, obtido pela coluna e que permanece arquivado no SEI da corporação, foi entregue à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa (CLDF) em setembro, após a operação da Polícia Federal que prendeu a cúpula da corporação, quando a PMDF já estava sob o comando do então comandante-geral Adão Teixeira. No entanto, o material elaborado pelo major nunca chegou ao conhecimento de Moraes.

Providências

O relatório do major Alencar descreve que o material tem como objetivo “informar com o máximo de detalhes o planejamento, as medidas tomadas e os fatos que ocorreram na manifestação popular do dia 8 de janeiro de 2023”. A elaboração desse documento é obrigatória, segundo o regimento interno da corporação, e foi confeccionado porque Alencar exercia a função de comandante do batalhão, já que Kelly estava de férias.

Trechos do documento complicam a situação do coronel Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues. No material, o major menciona que recebeu o Protocolo de Ações Integradas (PAI) no dia 6 de janeiro, ao contrário do que foi dito por Casimiro em audiência ao juiz auxiliar de Moraes, quando o coronel afirmou que recebeu o documento apenas em 9 de janeiro, um dia após os atos. Uma quebra de sigilo telefônico do coronel, já nas mãos dos investigadores da Polícia Federal, entretanto, revela que de fato o encaminhamento do documento ocorreu por parte do coronel ao major às 14h20, em 6 de janeiro.

Moraes, em outubro último, chegou a dar um ultimato: solicitou ao comando-geral da corporação, no prazo de 24h, o envio de todos os materiais posteriores ao 8/1. A corporação, entretanto, não peticionou o documento elaborado pelo major, encaminhando o mesmo documento de junho de 2023. A coluna procurou a PMDF, mas até o fechamento desta edição, não obteve resposta.

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Ex-comandante no olho do furacão

O nome de Kelly também entrou no radar das investigações. Uma gravação, divulgada pela Folha de S. Paulo e obtida pela coluna, mostra a tenente-coronel tentando alinhar a defesa do major Alencar com a do ex-comandante-geral Fábio Augusto Vieira e do capitão Josiel Pereira César. A divulgação do áudio surpreendeu até os investigadores da Polícia Federal, conforme apurado pelo Correio com fontes ligadas ao inquérito que apura a atuação de policiais militares.

Os áudios indicam que Kelly tentava alinhar a defesa dos três — Fábio Augusto e Alencar são réus no processo que tramita no STF, enquanto Josiel não. A tenente-coronel procurou a esposa do major com a proposta, chegando, inclusive, a “conseguir todos os telefones dos advogados” para não causar ruído e seguir uma “história só”.

“Era muito importante porque a história de vocês converge, né? Pra depois não ter ruído, entendeu? Na hora de dar as declarações, de fazer a linha de defesa”, disse a tenente-coronel para a esposa do major, em ligação telefônica. “Eu posso conseguir todos os telefones dos advogados e passo pra você. E aí você, se houver interesse dela em uma situação só, ela entender como é que está a defesa dos outros, né, para também seguir na mesma linha. Porque é a mesma história”, concluiu Kelly, sugerindo uma reunião com a advogada de Alencar, que estava detido à época, após ser alvo de operação da PF inicialmente em fevereiro de 2023 e, novamente, em maio do mesmo ano.

A suspeita de possível interferência para omitir informações já era levantada pelos investigadores, com base em mensagens apreendidas no celular de Alencar, mas não havia sido confirmada até então. Na época, os policiais federais transcreveram um áudio do major, datado de 19 de abril de 2023, no qual ele relatava que a tenente-coronel Kelly estava procurando “qualquer furo que eu tivesse quando eu estava no comando do exercício do 6° (batalhão) pra botar no ‘meu rabo'”. Na época do 8/1, Kelly, que era comandante titular do batalhão que cuida dos Três Poderes, estava de férias.

“Inclusive, velho, a coronel Kelly, enquanto eu tava preso, ela tava assediando a Carol (esposa de Alencar), fazendo pressão, pressionando a Carol aqui pra que ela convencesse minha advogada para acertar depoimento, tu acredita velho. Pelo amor, aquela mulher é uma filha da p*, velho. Aquela mulher, meu irmão, meu irmão, como diz a Carol, velho, é bicho, ela é uma pessoa ruim. Ela é uma pessoa horrível. Essa é a definição da coronel Kelly, entendeu? Então assim, eu sei que o coronel Casimiro tava botando no meu rabo, dizendo que eu era o comandante, entendeu? A coronel Kelly foi ouvida, ela falou mesmo, ‘é, o Flavio mesmo, era comandante em exercício, ele tinha poder pra tomar as decisões’, olha só, velho. Quando é que um major, vamo lá, você conhece o coronel Casimiro, quando é que eu, um major, vou conseguir debater alguma coisa no coronel Casimiro? E outra, né, velho, p*, meu irmão, não sei só falei pra você, velho, eu fui escalado de boca, velho, de noite, de boca, cara. Não tinha plano de operação, não tinha nada. Aí eu sou jogado na fogueira, e aí, meu irmão, p*, neguinho quer botar no meu rabo?”, disse Alencar.

O major prossegue: “Então assim, é por isso que eu falei pra você, eu quero muito acreditar que o coronel Fábio Augusto também não esteja fazendo isso, querendo colocar no meu rabo, porque eu falo pra você, se essas declarações que, nesse jornal tá escrito, realmente ele deu, eu vou falar pra você, ele é um grande de um filho da p*, entendeu? Porque o coronel Fábio Augusto, em nenhum momento, ele me pediu efetivo, em nenhum momento ele, cara, ele não me cobrou nada, até porque ele sabe, velho, que eu não tenho poder pra isso, ele tinha que cobrar a era do DOP (Departamento de Operações) exercício ou do coronel Casimiro, né? Então, velho, é f*, velho, é f*”, afirmou o major em diálogo com um colega de farda, conforme transcrição recuperada pela PF.

O material divulgado deverá ser usado nas alegações finais de parte das defesas no processo. A coluna não conseguiu localizar a tenente-coronel.

MP quer inquérito para apurar o caso

Após a divulgação do caso, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) solicitou a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar a conduta de Kelly. No pedido, o promotor Flávio Milhomem, da 3ª Promotoria de Justiça Militar, determinou que o corregedor da corporação explique o suposto alinhamento proposto pela tenente-coronel. A PMDF terá um prazo de cinco dias para responder ao requerimento (veja a gravação abaixo).

Operação Contêiner

A investigação que apurou crimes relacionados a procedimentos licitatórios entre 2009 e 2014, envolvendo a compra de materiais para a construção e montagem de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e outras unidades básicas de saúde no DF, está em fase final processual.

O esquema, segundo a denúncia do MPDFT, era liderado pelo ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e teria se estendido ao Distrito Federal e outros estados por meio da venda de atas de registro de preços da Secretaria de Saúde fluminense. No DF, essas atas foram adotadas com sobrepreço pela Secretaria de Saúde.

A fase atual do processo incluiu a oitiva de testemunhas e o interrogatório dos réus, realizado no início do mês pelo juiz federal Ricardo Augusto Soares e pelo procurador da República Wellington Divino. Entre os acusados, estão os ex-secretários de Saúde Elias Miziara e Rafael de Aguiar Barbosa, ouvidos na semana retrasada no interrogatório. O caso, que corre sob sigilo, tem previsão de encerramento no primeiro semestre de 2025.

Médico indiciado

A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) indiciou o médico Izailson Chaves Rocha de França, 46 anos, flagrado embriagado no Hospital Regional de Samambaia (HRSam). O profissional foi detido após colidir com um carro estacionado na unidade e fugir do local, no início do mês. O relatório elaborado pelo delegado Marcelo Cerqueira e Silva apontou indícios suficientes para justificar o indiciamento.

O documento foi encaminhado ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que descartou a possibilidade de um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). A recusa foi fundamentada no fato de que o médico já havia firmado um acordo semelhante em 2022, quando também foi preso pelo mesmo motivo. A defesa do médico apontou que o caso mostrado pela imprensa distorce a realidade dos fatos.