Neste mês, o ministro Marco Buzzi despediu-se de seu mandato na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, especializada em Direito Privado. Recuperado da covid-19, que o deixou internado por algumas semanas, consegue ter um olhar otimista sobre o legado da pandemia. Mas confessa que já teve mais esperança em real melhoria na vida de quem de fato precisa: a população carente.
“Nada de bom é possível ver na peste que ceifa vidas. Entretanto, não há como negar que, em razão dela, desenvolvemos estratégias inteligentes destinadas ao enfrentamento e à superação de dificuldades. A valorização da cultura, dos costumes, do respeito, da integridade, da colaboração, entre outros vértices, são sustentáculos que provêm do âmago das pessoas e sobressaem nessas circunstâncias”, diz, nesta entrevista ao Correio.
Como magistrado, ele viu o número de processos aumentar com a pandemia, sobretudo com ações de falência e recuperação judicial, mas acredita que a Justiça brasileira foi célere, com a modernização de seus processos e uma produtividade recorde dos juízes. “O STJ deu respostas rápidas na criação e implementação de sistemas úteis para o enfrentamento das dificuldades e problemas surgidos, atuando, sobretudo, na correção de eventuais equívocos surgidos nas relações contratuais, de família, enfim, oriundas do seio da sociedade neste inegável cenário de crise”, explica.
Magistrado à moda antiga, que prefere se manifestar apenas nos autos, Marco Buzzi é, no entanto, um crítico à incapacidade da sociedade de atender a quem de fato precisa. “Já tive muito maior esperança na real concretização de melhorias destinadas às populações mais carentes. As marcantes desigualdades da sociedade brasileira, agora acentuadas, precisam ser colocadas no centro do debate. Sou fã do sistema liberal. Todavia, é necessário que a nossa sociedade, da livre iniciativa, aprenda, urgentemente, a socializar os benefícios do progresso para todos”, avalia. Mestre em conciliação de conflitos, Buzzi é taxativo ao falar sobre a crise entre poderes da República que se arrasta há meses: “Recomendo o diálogo e a preservação do bom convívio”.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Superior Tribunal de Justiça se modernizar, principalmente, diante da pandemia. Como o senhor avalia que o STJ contribuiu no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Superior Tribunal de Justiça, no âmbito da sua atuação, deu e continua dando relevante contribuição à superação dos impactos negativos causados pela covid, ao conseguir aumentar a sua produtividade, fato passível de constatação segundo os dados estatísticos oficiais da Corte, o que resulta da concepção e implementação de mecanismos necessários para a realização das sessões de julgamento na modalidade virtual, de sistemas alternativos para o atendimento aos advogados das partes, do foco dado às demandas que tratam de interesses essenciais às partes, destacadamente naquelas lides cujo objeto envolve exatamente questões associadas à pandemia, sem descuidar, ainda assim, da ordem cronológica de chegada dos processos ao tribunal.
Na sua área de atuação jurídica, que é o direito privado, já é possível sentir o impacto da crise econômica causada pela covid-19, por exemplo, na saúde das empresas? Como o Judiciário deve tratar situações de falência e recuperação judicial em um momento sensível como o que vivemos? Há alternativas à judicialização?
Sim, já é possível sentir também nos tribunais superiores os impactos causados pela pandemia, seja no volume de novas demandas, seja na urgência de determinadas medidas judiciais relacionadas ao tema. Isso vem ocorrendo não somente naquelas lides que envolvem falências e recuperações judiciais, mas, felizmente, os magistrados de todo o país estão sensíveis e atentos à função social da aplicação do direito, vez que, da boa entrega da prestação da jurisdicional, também provém a paz social. Vale recordar, apesar da quantidade de processos que afeta a velocidade dos julgamentos, os juízes de direito brasileiros são os que detêm, em âmbito mundial, a maior produtividade, conforme os dados disponíveis no site do Conselho Nacional de Justiça e dos Tribunais do país.
O senhor tomou posse na presidência da Quarta Turma meses antes do auge da pandemia. Como o trabalho de julgar se adaptou às contingências da covid e qual o balanço faz do biênio em que esteve à frente do colegiado?
A Quarta Turma de Direito Privado do STJ, bem como as demais que integram a Corte, graças ao elevadíssimo padrão, à dedicação e inteligentes opções criadas pelos profissionais servidores que integram todo o corpo de funcionários do STJ, conseguiu adaptar, em brevíssimo espaço de tempo, os sistemas internos de funcionamento da Casa, o que também foi possível ante a extremada colaboração de todos os ministros que ali atuam, a talentosa assessoria dos gabinetes e, destacadamente, a sensibilidade e apronto da Presidência do Tribunal da Cidadania, o qual, como é de todos sabido, não apenas nos últimos dois anos, revela-se como um dos mais eficientes órgãos integrantes do Poder Judiciário nacional, do que todos nós temos muito orgulho.
A crise sanitária tem cobrado respostas rápidas de instituições que, às vezes, agem de forma equivocada e imprudente. Em que medida, o STJ pode colaborar para evitar injustiças?
Creio que o STJ, neste cenário da crise experimentada em razão da covid, deu, sim, respostas realmente rápidas na criação e implementação de sistemas úteis para o enfrentamento das dificuldades e problemas surgidos, atuando, sobretudo, na correção de eventuais equívocos surgidos nas relações contratuais, de família, enfim, oriundas do seio da sociedade neste inegável cenário de crise. Mas é importante lembrar que o STJ, como todo o Judiciário, somente pode entregar serviços (prestação jurisdicional) quando é provocado, e precisa sê-lo conforme as regras técnicas do direito processual, dentro dos limites da missão que lhe é confiada pela Constituição.
De que forma a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
Não há dúvida de que a pandemia reforçou nossas noções acerca dos valores humanistas, uma vez que as crises, quando se debruçam no seio da sociedade, fazem por exaltar o sentimento de solidariedade entre as pessoas, independentemente da formação religiosa dos indivíduos. Nada de bom é possível ver na peste que ceifa vidas. Entretanto, não há como negar que, em razão dela, desenvolvemos estratégias inteligentes destinadas ao enfrentamento e à superação de dificuldades. A valorização da cultura, dos costumes, do respeito, da integridade, da colaboração, entre outros vértices, são sustentáculos que provêm do âmago das pessoas e sobressaem nessas circunstâncias.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como o senhor faz para aliviar a tensão?
Nos momentos difíceis é que se revelam as principais características das pessoas. Não tenho um olhar poético diante desse grave problema que assola a quase totalidade dos países do mundo. Sou pragmático. Em momentos como esse, busco aliviar a tensão não só provocada pelo confinamento, mas também típica do exercício da magistratura, por intermédio do cultivo da boa convivência entre os meus familiares, por via de boas leituras, na busca pela preservação da minha fé, tanto sob o prisma religioso quanto por acreditar, sinceramente, na possibilidade de contribuir para o aprimoramento das circunstâncias que nos cercam.
Como ficam as grandes questões do Brasil no pós-pandemia?
Após a pandemia, as grandes questões nacionais ficarão onde e como sempre estiveram, ou seja, no exato lugar determinado pela nossa capacidade de indignação, no lugar determinado pela nossa noção de cidadania. Já tive muito maior esperança na real concretização de melhorias destinadas às populações mais carentes. Creio que as marcantes desigualdades da sociedade brasileira, agora acentuadas, precisam ser colocadas no centro do debate. Sou fã do sistema liberal. Todavia, é necessário que a nossa sociedade, da livre iniciativa, aprenda, urgentemente, a socializar os benefícios do progresso para todos. O homem, emergindo da obscuridade hostil da pré-história, já teve tempo suficiente para proporcionar recursos básicos para todos (educação, saúde, segurança, habitação, etc). Creio que, independentemente dos efeitos da pandemia, preservadas as regras do establishment, já é tempo de concretizar, de propiciar a todos, de verdade, no mundo real, os benefícios indispensáveis a que possam viver com dignidade. Isso é o mínimo que se espera da sociedade organizada sob a égide do Estado de Direito.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se em alguma atividade coletiva a distância?
Além da magistratura, também me dedico ao magistério já há longos anos. Creio que os juízes de todo o país experimentaram sensíveis adaptações no que diz respeito à operosidade do sistema que conduzem. De outra banda, a atividade de professor, neste momento, exige participar de práticas virtuais coletivas, de modo a preservar a saúde das pessoas e, ao mesmo tempo, dar andamento às rotinas exigidas pelo nosso dia a dia.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Não apenas para mim, mas para quase todo o contingente de profissionais, em todo o mundo, foi necessário aprender novos métodos de executar nossas tarefas ordinárias, o que ensejou um real aprimoramento das pessoas.
Que ensinamento este momento nos deixa?
A realidade ditada pela pandemia propicia um real aperfeiçoamento no aprendizado e utilização das técnicas e recursos da informática, bom legado que será irreversível, notadamente no seio das atividades dos profissionais do direito.
O senhor está completando, em setembro próximo, dez anos de Brasília. Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Devido ao legado histórico de Brasília, ante a nova mentalidade que ela representou quando da sua fundação até os dias atuais, sinto muito orgulho por estar aqui. Gosto muito desta cidade e das pessoas com as quais tenho relacionamento particular e profissional. Nestes tempos da pandemia, reitero, as rotinas foram imensamente modificadas. Todos nós sentimos os efeitos desses novos e, queira Deus, transitórios tempos de covid. Brasília, apesar da pandemia, preserva uma das suas principais características, a de receber a todos de braços abertos.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
A indagação é muito boa, todavia, como juiz de carreira que sou, já por 39 anos, não acredito que esteja inserida na função própria da magistratura, de carreira, dar opiniões sobre determinados fatos ou atos que possam, dentro de algum tempo, estar direta ou indiretamente sujeitos à jurisdição, como, de fato, já está ocorrendo. Com todo o respeito que devo ter em relação a diferentes convicções, mas sou do tempo em que juiz de direito somente falava sobre dados assuntos exclusivamente nos autos dos processos que lhe eram submetidos, mormente sobre suas convicções acerca de temas que poderiam vir à sua deliberação. Ainda sou desse tempo da magistratura.
Vivemos uma crise entre poderes da República que se arrasta há meses. O senhor é mestre em conciliação de conflitos. O que sugere para pacificar o país?
Como todo e qualquer mediador, recomendo o diálogo, a preservação do bom convívio entre as pessoas e as instituições, mas tudo, sempre, a bem dos interesses da sociedade.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Sim. Creio muito nessa possibilidade e, segundo minha visão, entendo que tal coisa já esteja acontecendo, mormente diante da existência de lideranças políticas que realmente militam com boas intenções, com sinceridade e apego a ideias, que vão muito além das metas ideológicas dos próprios partidos que integram.
O senhor passou semanas internado com covid. Está plenamente recuperado ou ainda enfrenta sequelas? Conte-nos sua experiência.
Sim, estou completamente recuperado, não sinto mais qualquer sequela e tenho muito a agradecer aos hospitais de Brasília, aos médicos que aqui atuam, especialmente ao Dr. Fabrício da Silva e Dra. Ludhmila Hajjar.
O senhor teve medo de contrair a doença? Justificam-se ainda os cuidados preventivos?
O receio em contrair a doença é justificável e muito grande, especialmente quando a pessoa consegue superá-la, pois nesse momento é que se tem noção das gravíssimas consequências que podem dela resultar. O aspecto positivo, no receio frente à doença, contribui com as estratégias voltadas a evitar a contaminação.
Que palavra de conforto e otimismo o senhor daria para quem ainda luta diariamente para se recuperar das sequelas da doença?
Manter a fé na recuperação, pois ela é possível. Buscar recursos que sejam aptos, verdadeiramente eficientes na cura do mal e incluir hábitos que auxiliem no resgate da saúde física e mental.
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