Um vizinho indesejável, a Doutrina Monroe e a química entre Lula e Trump

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Os EUA, na lógica de competição global com a China, revalorizam o hemisfério como zona essencial de segurança. O Brasil opera na lógica de preservação da paz regional

A conversa telefônica entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump, revelada pelo presidente brasileiro em Belo Horizonte, o choque de visões que hoje estrutura a crise no hemisfério. De um lado, um líder latino-americano que insiste na negociação, dissuasão diplomática e acordos multilaterais. De outro, um presidente norte-americano que ostenta poder bélico como argumento político e cuja nova Estratégia de Segurança Nacional recoloca as Américas no centro de uma doutrina de hegemonia já conhecida: a velha Monroe (“A América para o americanos”), agora reeditada como “Corolário Trump”.

A ironia é a “química” entre os dois: cada qual reconhece no outro uma força que precisa manejar com cautela, apesar das discordâncias estratégicas. Ao afirmar que “acredita mais no poder da palavra do que no poder da arma”, Lula sintetizou a posição histórica da diplomacia brasileira e, ao mesmo tempo, expôs a fragilidade dessa postura no ambiente atual. A Venezuela transformou-se num epicentro de instabilidade que nenhum país do continente consegue mais contornar por si só. A deterioração interna é dramática: colapso institucional, repressão sistêmica, migração de 8 milhões de pessoas e uma economia reduzida a um quarto do que já foi.

A fraude eleitoral de 2024 encerrou qualquer narrativa de legitimidade do regime de Nicolás Maduro. Mas o modo como esse impasse será resolvido tem consequências que vão muito além das fronteiras venezuelanas. Trump deixou de tratar a Venezuela como uma crise humanitária; trata-a como um objeto geoestratégico. A presença da Quarta Frota no Caribe, os mais de 20 ataques a embarcações suspeitas de narcotráfico, com episódios criminosos de execuções de sobreviventes e, sobretudo, as ameaças de enviar tropas para operações terrestres compõem um cenário de pré-intervenção, que escalou com a apreensão de um petroleiro nesta semana.

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Em outra época, manobras assim seriam vistas como retóricas; hoje, fazem parte da tentativa de recuperação da preeminência norte-americana no Hemisfério Ocidental. A nova Estratégia de Segurança Nacional afirma que os EUA devem “negar a concorrentes de fora do hemisfério a capacidade de controlar ativos estratégicos”, condicionando, inclusive, assistência econômica à redução da influência chinesa.

Berlinda

Nesse contexto, Nicolás Maduro deixa de ser apenas um vizinho indesejável e a Venezuela se torna um laboratório geopolítico. Sua eventual queda por pressão militar serviria de aviso geral: Washington está disposto a usar força para reconfigurar sua zona de influência. O risco é que a intervenção não produza estabilidade, mas um vácuo de poder com a emergência de milícias armadas, fragmentação política e o risco de uma guerra civil prolongada. Nada indica que um país devastado por uma década de fome, repressão e colapso institucional possa se reorganizar sem longo período de turbulência.

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É nesse tabuleiro que o Brasil foi colocado. Lula mantém a doutrina de não intervenção do Itamaraty, mas enfrenta pressão crescente dos EUA, de vizinhos e de setores internos. Para Washington, a cautela brasileira pode ser interpretada como alinhamento ao chavismo, o que não é o caso, porém essa narrativa vai ao encontro das ambições do “Corolário Trump”. Por outro lado, a China é a principal parceira comercial do Brasil, em razão da realidade das cadeias globais de comércio. O Itamaraty tenta equilibrar esses três eixos conflitantes: soberania regional, defesa da democracia e autonomia estratégica.

A reação de Trump à fala de Lula — “eu tenho mais arma, mais navio, mais bomba” — expõe uma assimetria estrutural. Os EUA, na lógica de competição global com a China, revalorizam o hemisfério como zona essencial de segurança. O Brasil opera na lógica de preservação da paz regional, estabilidade fronteiriça e desenvolvimento interno. É um diálogo com dois paradigmas distintos. No entanto, Lula e Trump parecem se compreender mais do que sugerem suas palavras. Há um respeito pragmático: Lula sabe que não pode confrontar frontalmente os EUA; Trump sabe que nenhum projeto de hegemonia hemisférica se sustenta sem o Brasil, mesmo que o considere relutante ou ambíguo.

O fechamento do espaço aéreo venezuelano pelos EUA colocou o continente em estado de alerta. Um conflito militar reabriria feridas históricas e potencializaria redes criminosas transnacionais já presentes na Amazônia. A comparação com o Vietnã é exagerada, mas a cultura política sul-americana rejeita invasões estrangeiras. E a memória da Operação Condor e das ditaduras militares latino-americanas continua viva.

Por isso, é necessário oferecer alternativa concreta de transição democrática na Venezuela, sob pena de o Brasil se tornar um mero espectador. A “química” entre Lula e Trump pode, paradoxalmente, ser um dos poucos canais capazes de evitar o pior. Lula é, entre os líderes do continente, o único com acesso direto ao presidente dos EUA e com legitimidade internacional para propor uma saída não militar.

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Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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