O Zumbi de cada dia

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Existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos

No livro Escravidão, primeiro volume, de Laurentino Gomes, Zumbi dos Palmares é descrito como um herói em construção. Encurralado e morto no dia 20 de novembro de 1695, pelo capitão André Furtado de Mendonça, estava acompanhado de 20 guerreiros, dos quais somente um foi capturado vivo; os demais lutaram até a morte. “Decepada e salgada”, a cabeça do líder quilombola foi enviada para Recife, onde ficou exposta no Pátio do Carmo. Em carta ao rei de Portugal, o governador Mello e Castro registrou para a história a origem do mito:

“Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e injustamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.

Hoje, quase ninguém sabe quem foi o ex-governador de Pernambuco Mello e Castro, seu sobrenome é associado ao engenheiro, escritor, artista plástico e poeta experimentalista português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que se radicou em São Paulo, onde morreu em agosto passado . Zumbi, não; a data de sua morte rivalizava com o Dia da Abolição, 13 de Maio de 1888, como marco da luta dos negros no Brasil. O Treze de Maio foi feriado nacional durante toda a República Velha; o 20 de novembro somente em 2011 foi oficializado como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas é considerado feriado somente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondônia.

O conflito de datas não é trivial, reflete uma disputa ideológica entre aqueles que não admitem a existência do racismo no Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro — “sou daltônico”— e o vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão – “não existe”—, e os militantes do movimento negro, que lutam contra o racismo estrutural brasileiro, para os quais a Lei Áurea seria um ato de fachada da aristocracia agrária e escravocrata. O Brasil foi o último pais do Ocidente a acabar com o tráfico de escravos, em 1850, e com a escravidão, 38 anos depois. Não haveria o que comemorar no 13 de maio porque os escravos libertos foram abandonados à própria sorte, sendo substituídos por trabalhadores imigrantes europeus nas lavouras, manufaturas e comércio.

Os mitos
Entretanto, uma biografia robusta de Zumbi, segundo alguns historiadores, é uma tarefa impossível, em razão da insuficiência de fontes primárias e da multiplicidade de versões. Haveria três Zumbis míticos:

(1) O Zumbi dos colonizadores. Palmares era apontado como um núcleo de barbárie africana e ameaça à civilização. Joaquim Manoel de Macedo, médico e escritor, autor de A Moreninha e Memórias da Rua do Ouvidor, em 1869, afirmava que os negros carregavam “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravocrata, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra de seus incônscios opressores”. Essa visão permanece subliminarmente na nossa sociedade em relação aos negros.

(2) O Zumbi revolucionário. Está associado “à autêntica luta de classes que encheu séculos de nossa história” — na visão do jornalista Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, no jornal A classe Operária, em 1929 —, cujo momento “culminante de heroísmo e grandeza” fora a república de Palmares, “tendo a sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartaco negro”. É uma visão ideológica, que reproduz o determinismo marxista da época na interpretação da História e predomina na velha esquerda, que subordina a questão do racismo à luta de classes.

(3) O Zumbi em construção. É o mito que nasce do movimento abolicionista, que o elegeu como ícone da resistência dos escravos, mas ganhou fôlego no século XX, como ícone literário, consagrado nos livros de Joel Rufino, Décio Freitas e Ivan Alves Filho na década de 1980, e reproduzido na pintura, no cinema, na música e nos desfiles de escolas de samba.“É o Zumbi dos oprimidos, herói das lutas pela liberdade, não só de escravos e negros, mas também dos camponeses, índios, trabalhadores, das minorias”, segundo Laurentino Gomes. É uma visão mais pluralista.

Lugar de fala

Existe um Zumbi para cada oprimido, até mesmo uma versão de que o herói de Palmares seria um gay jaga, do antropólogo baiano Luiz Mott. O mito renasce a cada dia, não por causa dos historiadores, mas em razão da existência objetiva do racismo  e da luta identitária, centrada no “lugar de fala”. A exclusão, a injustiça social e a violência física incidem mais contra os negros do que contra outros segmentos da população, independentemente do nível social. Há todo um debate político sobre as agendas identitárias e a política de cotas raciais, que agora chegou à distribuição de recursos dos partidos na campanha eleitoral, e mesmo uma polêmica sobre a reprodução de conceitos e práticas do movimento negro norte-americano aqui no Brasil, que não seriam compatíveis com a realidade de um pais miscigenado como nosso, capaz de “traduzir” toda e qualquer identidade étnica do ponto de vista cultural.

Entretanto, existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos. É o caso do assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, espancado até a morte por dois seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. O crime ocorreu na véspera do dia da morte de Zumbi dos Palmares, cujas comemorações se transformaram em manifestações de protesto em todo o país. Episódios como esse fazem o mito de Zumbi ser mais forte a cada dia, ainda mais se levarmos em conta que o herói de Palmares inspira uma nova elite artística e intelectual negra, que lidera a tomada de consciência sobre o racismo estrutural no Brasil, contra o qual lutou com relativo êxito individual, mas que permanece à espreita em cada esquina de suas vidas.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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