Se a polarização com os bolsonaristas foi boa para Lula chegar ao segundo turno e nele derrotar Bolsonaro, porém não será boa para a sua governabilidade
O ex-presidente Jair Bolsonaro volta ao Brasil “causando”, como se diz nas redes sociais. A mobilização bolsonarista para aguardá-lo no aeroporto de Brasília, hoje, pretende ser uma demonstração de força, ainda que as autoridades do Distrito Federal (GDF) tenham tomado medidas para evitar uma grande manifestação política no desembarque principal do aeroporto e uma carreata em carro aberto até a Esplanada dos Ministérios. Toda a bancada bolsonarista no Congresso está sendo mobilizada para recepcioná-lo.
Bolsonaro foi intimado pela Polícia Federal a prestar esclarecimento, juntamente com seu ex-ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, sobre o caso das joias recebidas pelo presidente na Arábia Saudita. O segurança de Bolsonaro Marcelo Câmara também foi intimado. O depoimento foi marcado para 5 de abril, às 14h30. Até lá, o ex-presidente terá uma semana de alta exposição política, ainda que negativa, principalmente nas redes sociais, em que continua forte a presença bolsonarista.
O clima no Congresso já reflete a rearticulação dos bolsonaristas e a polarização com o governo. Embora presidida pelo deputado petista Rui Falcão (SP), a Comissão de Constituição e Justiça é um palco bolsonarista. Como controlaram o colegiado por quatro anos, os aliados de Bolsonaro têm cancha para fazer muito barulho. O bate-boca de ontem entre os deputados André Janones (Avante-MG), governista, e Alberto Fraga (PL-DF), aliado do ex-presidente, mostra bem o clima que está se criando.
Janones provocou a discussão ao desafiar a oposição: “Eu fiquei esperando até aqui algum parlamentar que tivesse, aqui nessa comissão, a valentia que tem nas redes sociais. Mas, infelizmente, parece que a grande maioria dos bolsonaristas são frouxos, não têm coragem de dizer aqui quem foi que chamou o ‘deputado chupeta’ de ‘chupetinha’. Quem usou essa expressão fui eu”, afirmou o parlamentar. Nikolas Ferreira (PL-MG) é aquele deputado que pôs uma peruca loira durante discurso homofóbico na tribuna da Câmara, no Dia da Mulher.
Segundo Janones, em Minas Gerais, Nikolas Ferreira é tratado como chupeta. “Esse é o apelido. E não tem nada a ver com homofobia, não vamos transformar um problema sério como é a homofobia no nosso país, em que milhares de homossexuais são assassinados e são vítimas de ódio, com apelido”, disse. Fraga tomou as dores do colega e ameaçou o governista: “Eu não uso chupeta, não. Eu uso é revólver mesmo, é pistola”, disse. Coronel aposentado da PMDF, Fraga foi para cima de Janones, mas foi impedido por colegas de entrar em luta corporal. A sessão virou um tumulto.
À moda Lacerda
Se a polarização com os bolsonaristas foi boa para Lula chegar ao segundo turno e nele derrotar Bolsonaro, porém não será boa para a sua governabilidade. O governo precisa de uma base parlamentar ampla, que não funciona nesse tipo de confronto, e uma agenda política no Congresso que evite o isolamento do PT. O tipo de radicalização que houve ontem na CCJ, e pode se repetir em outras comissões e no plenário da Câmara, é um fator de mobilização dos bolsonaristas.
Lula enfrenta uma oposição que briga de tamancos nas mãos, nas ruas. Nos seus governos anteriores, a oposição era elitista, usava salto alto e punhos de renda. A oposição antipetista de massas surgiu nas grandes manifestações de 2013, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, e derivou para o bolsonarismo, após a campanha do impeachment. A chance de uma “terceira via” moderada naufragou no governo de Michel Temer, que fez uma boa gestão administrativa, mas foi torpedeado abaixo da linha d’água pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, após uma conversa com o empresário Joesley Batista (JBS), gravada pelo interlocutor.
Se é que isso é possível, somente um personagem da nossa política republicana pode ser comparado a Bolsonaro na virulência dos ataques aos adversários e no golpismo político: o ex-governador da antiga Guanabara Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Fundador do jornal Tribuna de Imprensa, jornalista, liderou a oposição aos governos de Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964), até apeá-los do poder. O primeiro se matou depois do famoso atentado da Rua Toneleiro, perpetrado por um guarda-costas de Vargas, no qual Lacerda foi baleado na perna e um major da Aeronáutica, que o acompanhava, foi morto; o segundo, foi deposto pelo golpe militar de 1964, que Lacerda apoiou de armas nas mãos.
Filho do jornalista e político comunista Maurício de Paiva de Lacerda, seu nome homenageia Karl Marx e Frederich Engels, os autores do Manifesto Comunista de 1848. Entretanto, Lacerda tornou-se um ferrenho político anticomunista e conservador, filiado à União Democrática Nacional (UDN). Ex-comunista, construiu a narrativa de que o populismo trabalhista era uma “ameaça comunista”.
Segundo as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, Lacerda era “atrevido, oportunista e mais abusado ainda”. Entretanto, ao contrário de Bolsonaro, “tinha verve, erudição, esbanjava competência e possuía uma inteligência incendiária. Lacerda sabia manejar as palavras, e era um mestre insuperável na arte da intriga política: surpreendia o adversário com suspeitas, acusava com ou sem provas, ridicularizava, achincalhava, sempre de forma sistemática e em tom contundente”. O jornalista Carlos Castelo Branco atribuiu a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a uma intriga palaciana, que empurrou Lacerda para a oposição.