Nas entrelinhas: Vamos falar de exclusão estrutural

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Não existe apenas uma via de ascensão social, pautada pelas políticas públicas inclusivas, de caráter social-democrata; também há o empreendedorismo e o esforço individual na via iliberal, com outros valores

“Toca para a frente, berrou o cabo. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu.
— Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu- se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando.
— Hum! hum!
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir.
— Bem, bem.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar das machucaduras.
Ora, o soldado amarelo…”

Essa passagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos (1892-1953), publicado em 1938, um clássico de nossa literatura moderna, retrata a relação de poder no sertão nordestino, num determinado momento na vida de uma família de retirantes, que foge de miséria e da seca. Fabiano é brutalmente agredido, depois de se retirar de um carteado, para o qual fora intimado pelo soldado amarelo, sem pedir autorização. Hoje, é uma situação corriqueira nas grandes cidades brasileiras, e não só nas periferias.

Mais do que a fuga da seca causada pela inclemência da natureza (Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.), o que oprimia Fabiano e sua família eram as relações de dominação estabelecidas pelos próprios homens, cujas vidas são apresentadas em toda a sua complexidade.

Assim como existe um racismo estrutural na sociedade brasileira, há também um processo de exploração, humilhação e alienação estrutural da maioria da população brasileira, o que explica o fato de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva liderar a disputa eleitoral para a Presidência da República com ampla vantagem entre os eleitores de mais baixa renda (até dois salários mínimos) e de menor escolaridade, principalmente no Nordeste. Lula é um ex-retirante que chegou à Presidência. Ou seja, encarna o sonho de qualquer nordestino ou cidadão pobre das periferias dos grandes centros que pretende mudar de vida e a de seus filhos.

Mobilidade e inclusão

Para entender a exclusão estrutural, precisamos considerar o regime escravocrata que vigorou no Brasil do início do século 16 ao final do século 19, marcado pela exploração de mão de obra africana trazida para o Brasil pelos colonizadores portugueses. A escravidão deixou marcas profundas de desigualdade em todas as estruturas de poder.

Após a abolição, em 1888, pessoas negras não tiveram acesso à terra, indenização ou reparo por tanto tempo de trabalho forçado. Muitos permaneceram nas fazendas em que trabalhavam em serviço pesado e informal. Foi a partir daí que se instalou o racismo estrutural, a exclusão de pessoas negras dentro das instituições, na política, e em todos os espaços de poder.

Esse conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas, culturais, porém, não ficou restrito aos negros, atingiu também os indígenas (cuja resistência à miscigenação foi combatida com o extermínio físico e cultural) e a população mestiça e pobre, que viria a migrar para os grandes centros com a urbanização e, principalmente, a industrialização.

O mapa socioeconômico das eleições mostra claramente que as classes médias e a elite econômica do país, majoritariamente, desejam a continuidade do governo Bolsonaro. Mesmo que eventualmente discordem de suas posições mais extremistas, da sua misoginia e autoritarismo. E que a população de mais baixa renda, excluída de quase tuto, exceto o direito ao voto secreto, direto e universal, também majoritariamente, apoia a oposição e deseja a mudança, com a volta de Lula ao poder.

É uma divisão perigosa, porque revela um conflito estrutural, de natureza de classe. Historicamente, isso tem se resolvido com a força bruta das soluções autoritárias, que buscam a modernização do país por vias que mantêm a secular exclusão da grande massa da população, despreparada cultural e tecnicamente para um novo ciclo de transformações, como o que estamos vivendo.

Está vivíssima a velha segregação social, que explica as cidades partidas, a existência de elevadores sociais e de serviço em edifícios residenciais e suas dependências de empregadas. Mas não podemos ser maniqueístas, não existe apenas uma via de ascensão social, pautada pelas políticas públicas de caráter inclusivo, social-democrata ou social-liberal; a via iliberal também tem o empreendedorismo e o esforço exclusivamente individual como fatores de mobilidade social, de formação da nova classe média e de uma nova elite econômica, com outros valores.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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