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Nas entrelinhas: Tudo começou com Luís XIV: “O Estado sou eu”

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Na Presidência, Bolsonaro comportou-se como se fosse a personificação do Estado, imaginou que os presentes que recebeu na Arábia Saudita fariam parte do seu patrimônio pessoal

A frase L’État c’est moi, no original em francês, é atribuída ao Rei Luís XIV (1638-1715), também conhecido por Rei-Sol, que governou a França e Navarra entre 1643 e 1715. É a síntese do absolutismo, no qual a centralização do poder na figura do rei possibilitou a consolidação dos Estados nacionais, em aliança com a burguesia comercial, que seria fundamental para a expansão europeia e o desenvolvimento do mercantilismo. A oração completa é je suis la Loi, je suis l’État; l’État c’est moi (eu sou a lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!). Na monarquia absolutista, o rei controlava a segurança, as contas do governo, as alianças internacionais, o Exército, a Marinha e o espaço público.

A série Versailles (Prime Vídeo), drama biográfico de ficção histórica, de 2015, descreve a construção do Palácio de Versalhes, para o qual foi transferida a Corte de Luís XIV, com objetivo de apartar o poder das turbulências de Paris, então uma cidade de ruas estreitas, que facilitavam a formação de barricadas nas revoltas populares. Luís XIV acreditava na origem divina do poder real, porém fez pactos com a emergente burguesia francesa para se manter no poder e reduzir ao máximo a influência da nobreza. Assim, governou por sete décadas.

A frase famosa teria sido dita em 13 de abril de 1655, durante uma sessão tumultuada no Parlamento francês, no entanto não existe nenhum registro oficial sobre isso. Ao morrer, em 1715, aos 77 anos, teria afirmado: Je m’en vais, mais l’État demeurera toujours (eu saio, mas o Estado sempre permanecerá). Foi o que aconteceu. Luís XIV gostava de exibir seu poder por meio de luxo e riqueza. Os acervos do Palácio de Versalhes e o Museu do Louvre abrigam muitas joias que pertenceram ao Rei-Sol: rubis, esmeraldas e diamantes rivalizam em beleza nas delicadas peças de ourivesaria. Menos o Diamante Azul, também denominado Bleu de France (Azul de França), que Luís XIV adquiriu por 220 mil libras, o equivalente a 150 quilos de ouro puro à época.

Em 1668, Jean-Baptiste Tavernier, um aventureiro francês, chegou a Versalhes com uma série de diamantes de grande pureza que adquirira na Índia. O maior deles, uma peça de 115 quilates (cerca de 20 gramas) com tom azulado, encantou Luís XIV. Em 1749, Luís XV resolveu incluir o diamante na insígnia da Ordem do Tosão de Ouro, um conjunto de topázios, rubis e outras pedras preciosas, presidido pelo diamante, do qual pendia um velo — símbolo da Ordem — coberto de diamantes.

No início da Revolução Francesa, todas as joias reais foram transferidas de Versalhes para Garde-Meuble, o depósito dos bens da realeza, no Hôtel de la Marine, nas proximidades da atual Praça da Concórdia. O antigo camareiro do rei Thierry Ville-d’Avray, entretanto, levou nove caixas de joias para casa. O ladrão foi preso, e as joias recuperadas, mas a notícia correu. Em 11 de setembro de 1792, um grupo de desconhecidos “iludiu” a Guarda Nacional e roubou o tesouro real. Ao longo do tempo, as joias mais importantes foram novamente recuperadas, menos o Tosão de Ouro.

Sigam o relógio

Em 1812, um diamante de 45,5 quilates e forma oval, cuja origem ninguém conseguia determinar, foi vendido por um joalheiro londrino chamado Daniel Eliason ao banqueiro e colecionador Thomas Hope, que deu o seu nome ao “novo” diamante. Exibia-o com frequência, até mostrá-lo na Exposição Universal de Paris de 1855, quando o gemólogo Charles Barbot relacionou o Hope com a valiosa pedra preciosa do Tosão de Luís XV. A partir de 1896, quando o banco declarou falência, a joia seria leiloada diversas vezes, até acabar nas mãos do colecionador nova-iorquino Harry Winston, que a doou ao Museu de História Natural do Smithsonian Institution de Washington, onde o Diamante Azul permanece desde 1958.

Nesta segunda-feira, a Polícia Federal, em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu US$ 25 mil (cerca de R$ 136 mil na cotação atual) em espécie provenientes da venda de joias sauditas recebidas em viagem ao exterior, entre elas um relógio cravejado de diamantes. De acordo com as investigações, Bolsonaro teria recebido o dinheiro vivo do general da reserva Mauro Lourena Cid, pai do tenente-coronel Mauro Cid, que fez delação premiada no inquérito que apura a venda de joias e o envio dos itens de alto valor para venda nos Estados Unidos.

O dinheiro teria sido sacado nos EUA e trazido ao Brasil para ser entregue a Bolsonaro. Ao todo, a corporação aponta que teriam sido movimentados R$ 6,8 milhões com a venda das joias. O relatório incluiu a descoberta de uma nova joia, levada aos EUA para ser comercializada. Além de Bolsonaro, foram indiciados o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, o pai dele, Mauro Cesar Cid, os advogados Frederick Wassef e Fabio Wajngarten, entre outros. Alexandre de Moraes encaminhou o inquérito policial ao Ministério Público Federal (MPF), para que se pronuncie sobre se denuncia ou não os envolvidos.

Nem de longe Bolsonaro tem o mesmo apego às joias de Luís XIV, se o tivesse, não teriam sido vendidas. A moral da história é outra: na Presidência, comportou-se como se fosse a personificação do Estado, imaginou que os presentes que recebeu na Arábia Saudita fariam parte do seu patrimônio pessoal. Ninguém joga diamantes fora, o luxuoso relógio foi o fio da meada. Como o tesouro de Luís XIV, os bens são do Estado. O resto será consequência.

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