A solenidade militar corrobora supostas ameaças feitas por Braga Netto, de não se realizarem as eleições caso o voto impresso não seja aprovado
A Câmara deve votar, hoje, o relatório do deputado Raul Henry (MDB-PE) que rejeita a proposta de emenda à Constituição (PEC) 135/2019, que propõe a adoção do voto impresso, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF). Estima-se que a proposta tenha mais de 320 votos contrários, contra menos de 100 a favor, quando precisaria de, no mínimo, 308 votos para ser aprovada. Caso se confirme o placar, será uma derrota acachapante do presidente Jair Bolsonaro, expondo seu isolamento político e a fragilidade da base parlamentar bolsonarista. Trocando em miúdos, o voto impresso só contaria com o apoio dos deputados de extrema-direita. A votação será a constatação de que o governo Bolsonaro não tem como sobreviver sem o apoio do Centrão, que ficará com a faca e o queijo na mão na Esplanada.
Esse será o resultado, também, de um gesto equivocado de Bolsonaro, com apoio do ministro da Defesa, general Braga Netto, empenhado em constranger os comandantes militares a fazerem demonstrações de alinhamento político com o presidente da República. Nesta manhã, está programada uma cerimônia militar na Praça dos Três Poderes, na qual o presidente da República será convidado a participar de exercícios militares da Marinha no campo de manobras da Operação Formosa (GO), a cerca de 50 quilômetros de Brasília. Tanques, carros anfíbios, lançadores de foguetes e obuseiros da Marinha, que estão sendo deslocados do Rio de janeiro para Goiás, desfilarão pela Esplanada dos Ministérios e estacionarão defronte ao Palácio do Planalto, ou seja, na Praças dos Três Poderes, ao lado do Congresso e em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para gregos e baianos, soa como uma intimidação.
Entretanto, trata-se de um exercício realizado periodicamente, para adestramento dos fuzileiros navais da Esquadra, que simulam operações de combate com emprego de munição real e apoio do Exército e da Aeronáutica. Desta vez, porém, o deslocamento dos veículos e da tropas do Rio de Janeiro para Goiás foi. transformado numa espécie de “tanqueata”, para demonstração de apoio político aos propósitos golpistas do presidente da República, justo no dia em que a Câmara deve rejeitar a proposta de voto impresso. Bolsonaro não faz outra coisa que não seja pôr em suspeita a lisura das eleições com urna eletrônica. Tenta intimidar o Congresso, para restabelecer o voto impresso, com a ameaça de não permitir a realização das eleições. Consegue ofuscar até as propostas do próprio governo que visam criar uma agenda positiva.
A solenidade militar corrobora supostas ameaças feitas por Braga Netto, de não se realizarem as eleições caso o voto impresso não seja aprovado; na real, é mais um constrangimento para as Forças Armadas, indispondo-as com o Congresso, numa hora em que já se discute limitar a presença de militares da ativa na administração pública. A repercussão no Congresso é péssima; na sociedade, também, porque nos remete às quarteladas do século passado.
Ordem unida
Também nos lembra uma velha piada dos estertores do Estado Novo, logo após a volta da Força Expedicionária Brasileira (FEB) dos campos de batalha da Itália, onde lutaram contra o Exército alemão. O general Góes Monteiro, chefe militar da Revolução de 1930 e ministro da Guerra no Estado Novo, às vésperas de destituir Getúlio Vargas, era um dos alvos preferidos da oposição. Fora simpatizante do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), no período em que Vargas vacilava entre se aliar ao nazifascismo ou entrar na II Guerra Mundial ao lado dos Estados Unidos e do Reino Unido. Em visita à Alemanha, Monteiro ficou impressionado com a disciplina das Wehrmacht, ao ver um sargento alemão se atirar da janela do terceiro andar, após receber ordens expressas de seu comandante, estatelando-se no pátio do quartel. No Japão, se impressionou mais ainda, ao visitar um porta-aviões e assistir uma cerimônia de seppuku, suicídio ritual na qual um camicase dedicou a vida ao Imperador e à vitória do Japão.
Ao voltar para o Brasil, Góes Monteiro não teve dúvidas. Madrugou no Palácio do Catete, sede do governo, no antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro), e mandou tocar a alvorada às 5h. A Guarda Presidencial saiu dos alojamentos assustada, sem entender o que estava acontecendo, com os dragões desalinhados, rabo de cavalo do capacete para a frente, coturnos desamarrados, túnicas fora da calça, remelas nos olhos… O general aproximou-se do sargento Tião, velho conhecido, que liderava o pelotão. Em alto e bom som, deu a voz de comando: “Dragões, sentido!” A tropa se endireitou. “Esquerda, volver!”. A tropa perfilou. “Apresentar armas!”. Tião ficou cara a cara com o general, com quem tinha até certa intimidade, e sentiu o bafo carregado de uísque. Não se conteve: “Senhor, bêbado a uma hora dessa?”.