Por que os cidadãos com escolaridade superior e renda alta votam majoritariamente em Bolsonaro e os com renda até dois salários mínimos e menor escolaridade preferem Lula?
Com mais de 156 milhões de eleitores, o Brasil é uma das maiores democracias de massa do mundo. Mesmo com o percentual de abstenções verificado neste primeiro turno, em torno de 20%. A nossa vantagem em relação às demais grandes democracias do Ocidente, porém, é o nosso sistema de votação e apuração, mais moderno e mais eficiente do que os das democracias mais antigas, como as dos Estados Unidos e da Inglaterra. Com todos os seus problemas, o nosso sistema eleitoral é à prova de fraudes e permite que os resultados da eleição sejam proclamados no mesmo dia, como observamos ontem. O segundo turno será realizado em 30 de outubro. Com 96,93% das urnas apuradas, Bolsonaro, que tenta a reeleição, ontem, recebeu 43,70% dos votos válidos, enquanto o ex-presidente Lula teve 47,85% dos votos, o que frustrou a expectativa de vitória do petista no primeiro turno, gerada pela campanha do voto útil.
A ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, a líder conservadora que protagonizou a reforma neoliberal no Reino Unido, numa crítica aos regimes autoritários, dizia que o povo erra na democracia, mas tem a oportunidade de corrigir o erro. Isso ocorre porque o sistema democrático garante, simultaneamente, a alternância de poder e o direito ao dissenso das minorias, para que possam ou não conquistar o poder a partir da oposição. No nosso caso, estamos diante de um cenário de extrema radicalização política, à qual os partidos e seus líderes não conseguiram superar, seja porque os seus protagonistas retroalimentaram o confronto, seja porque as demais forças e seus líderes não conseguiram oferecer outras alterativas consistentes à sociedade, como foi o caso de Ciro Gomes(PDT) e de Simone Tebet (MDB).
É aí que entra em cena o eleitor. Ao contrário do que muitos imaginam, o Brasil tem um sistema de representação política baseada em eleições desde o início de sua colonização pelos portugueses. Nossa primeira Câmara Municipal foi instalada em São Vicente, em 1532, por Martim Afonso de Souza, seu primeiro capitão donatário e futuro governador da Índia. Nunca as eleições municipais deixaram de ser realizadas, mesmo durante o Estado Novo e o regime militar.
Ao longo da história, o sistema eleitoral ampliou progressivamente a participação, até chegarmos ao voto secreto, direto e universal que temos hoje, com urnas eletrônicas. Houve uma época em que essa participação era restrita aos senhores de escravos e dependia da riqueza de cada eleitor, até da quantidade de produção de mandiocas, por exemplo, como na Constituição de 1823. Já havia um sistema de representação que se baseava na escolha de pessoas, o que explica a resiliência do voto uninominal no nosso sistema eleitoral. O regime de eleições proporcionais criado após a redemocratização de 1945, por iniciativa de Assis Brasil, foi adotado para fortalecer os partidos, e não o contrário. Foi bem-sucedido, porque o país tinha um naipe de cinco partidos que operavam a nossa política, até o golpe de 1964.
Carisma e mistério
O sistema bipartidário criado pelos militares, numa tentativa de institucionalizar o regime autoritário, fracassou. O partido de oposição, o MDB, fugiu ao controle e passou a derrotar sistematicamente o partido governista, a Arena. A reforma partidária de 1979 deu origem aos principais partidos hoje existentes, alguns egressos do MDB e outros da Arena, mas foi a criação do financiamento público às atividades partidárias, com regras muito frouxas, que possibilitou a proliferação dos partidos, que começa a ser revertida gradativamente pela adoção da cláusula de barreira. As eleições proporcionais deste ano desenham um processo de reestruturação dos partidos, com novas fusões e incorporações.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que sabe das coisas, costuma dizer que os projetos políticos no Brasil precisam ser “fulanizados” para que tenham viabilidade. Umas das dificuldades do chamado centro democrático, que ficou espremido nas eleições, foi a incapacidade de encontrar uma personalidade capaz de catalisar o sentimento popular de forma a construir um campo majoritário de forças moderadas.
Os carismas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que deu a volta por cima, como naquele samba antológico de Paulo Vansoline, e do presidente Jair Bolsonaro, que busca a reeleição, com todo o poder concentrado do governo, se impuseram nesta disputa de forma irreversível. O fato de um ex-presidente que governou por dois mandatos e um presidente no poder disputarem a Presidência cristalizou a polarização eleitoral. Mas isso não explica tudo.
Existe um mistério nestas eleições que precisa ser desvendado, não em relação às personalidades que protagonizam esse momento histórico e suas concepções ideológicas, mas ao perfil dos eleitores brasileiros. Por que os cidadãos com renda acima de cinco salários mínimos e nível de escolaridade superior votam majoritariamente em Bolsonaro e os que têm rendas até dois salários mínimos e menor nível de escolaridade votam no Lula? Essa divisão do país reflete as desigualdades existentes e o choque de interesses em relação às políticas públicas. É um dado objetivo da realidade social e política, que somente será ultrapassado quando suas causas forem mitigadas. A disputa de segundo turno será uma escolha que tem por pano de fundo essa contradição.