O julgamento tirou um gênio da garrafa no Congresso, porque a tendência da Câmara é aprovar a emenda à Constituição que endurece e engessa a política de drogas
Antes mesmo de acabar o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o porte de maconha para o próprio consumo, por 8 a 3, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), concedeu entrevista coletiva na qual discordou da decisão e afirmou que houve invasão da competência do Congresso. Sua manifestação corrobora a intenção de setores conservadores do Congresso, sobretudo os evangélicos e a chamada bancada da bala, de proibir não só o tráfico como criminalizar o consumo da droga.
Pacheco argumenta que há um critério técnico para dizer se uma substância deve ser considerada um entorpecente ilícito ou não. “Há uma lógica jurídica e racional que, na minha opinião, não pode ser tomada por uma decisão judicial, invadindo a competência técnica, que é da Anvisa, e a competência legislativa, que é do Congresso Nacional”, disse, logo após o ministro Dias Toffoli anunciar que havia se expressado mal ao votar, na quinta-feira passada, e que seu voto era pela “descriminalização da posse de maconha.”
Para Toffoli, o artigo 28 da Lei de Drogas 11.343, de 2006, é constitucional e já descriminalizou o consumo de todas as drogas no país. Ele argumenta que crime é aquilo que é punido com detenção ou reclusão. Já contravenção é o que é punido com prisão simples. Como o artigo não impõe detenção, reclusão ou prisão simples, Toffoli entendeu que não se trata de um crime.
“Ao dar interpretação conforme ao dispositivo em relação a cannabis, pode ser entendido que os usuários de outras drogas cometem crimes, e não foi essa a intenção da lei”, disse o ministro, ao explicar seu voto. Segundo ele, a punição de dois meses de serviços comunitários imposta ao usuário está de acordo com o previsto no artigo 28 e não acarreta nenhum efeito penal.
A explicação de seu voto desfez o entendimento de que o placar estaria num inédito cinco a três e a um. Formou-se, então, a maioria de 6 a 3, que praticamente decidiu o julgamento, antes mesmo de os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia também votarem a favor. Por essa razão, Pacheco afirmou que o STF gerou “uma perplexidade no combate ao tráfico de entorpecentes no Brasil”.
Ainda que se descriminalize a conduta de quem porta para consumo, a lógica é que quem porta para consumo necessariamente adquiriu de um traficante”, ressaltou Pacheco, segundo o qual, o Senado fez a sua parte ao votar a PEC que criminaliza o porte de maconha e proíbe o cultivo de cannabis com fins medicinais. “É uma discussão de método e forma. Nós fizemos nossa parte. Votamos a PEC, e agora a Câmara tem seu tempo de reflexão, à luz da decisão do STF”, completou. O presidente do Senado disse que a decisão gera “uma perplexidade no combate ao tráfico de entorpecentes no Brasil”.
No final do julgamento, o ministro Gilmar Mendes, relator da matéria no STF, ressaltou que a decisão da Corte não era um “liberou geral”, numa espécie de resposta às preocupações do presidente do Senado de que isso viesse a ser a decisão do Supremo. Hoje, o Supremo deve desistir a quantidade de drogas que distingue o tráfico do consumo pessoal de maconha. Em debate na Câmara, a proposta de total criminalização do porte de maconha e do cultivo doméstico da cannabis com fins medicinais é uma agenda da oposição ao governo no Congresso.
Casa revisora
Essa agenda foi encampada por Pacheco e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para agradar aos aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro na sucessão. O senador Davi Alcolumbre, candidato de Pacheco, fez uma aliança com a oposição liderada pelo senador Rogério Marinho (PL-RJ), enquanto Lira tenta viabilizar a candidatura de Elmar Nascimento (União Brasil-BA) à sua sucessão, também com o apoio da oposição.
O julgamento no STF tratou especificamente da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, que estabelece que é crime adquirir, guardar ou transportar drogas para consumo pessoal. Os ministros Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber (antes de se aposentar), Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Edson Fachin formaram a maioria. Votaram contra Cristiano Zanin, Nunes Marques e André Mendonça.
De acordo com a decisão da Corte, o porte de drogas é considerado um ilícito, mas não leva à prisão. As penas seriam apenas advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A decisão de repercussão geral foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, no qual um condenado por portar 3,3 gramas de maconha questionava a condenação à prestação de serviços comunitários. O recurso foi rejeitado, mas serviu para jurisprudência de repercussão geral.
O julgamento tirou um gênio da garrafa no Congresso, porque a tendência da Câmara é aprovar a emenda à Constituição que endurece e engessa a política de drogas. Em razão do xadrez sucessório de Pacheco e Lira, e do ambiente de ano eleitoral, os setores de extrema direita procuram atuar como uma espécie de Corte revisora de decisões do Supremo, apesar do princípio de que quem faz as leis (o Congresso) não as interpreta (tarefa do Supremo). Virou moda aprovar uma mudança à Constituição quando o Supremo toma decisões que contrariam a atual maioria conservadora do Congresso.
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