Nas entrelinhas: Só a vitória nos une

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Quem quiser que se iluda, a libertação de José Dirceu em meio à Copa do Mundo é uma espécie de amostra grátis do que pode acontecer com a Operação Lava-Jato após o recesso do Judiciário

Uma das poucas coisas na vida nacional que ainda demonstram nossa coesão social é a seleção de futebol em jogos da Copa do Mundo, como ontem, em Moscou, quando a equipe brasileira derrotou a Sérvia, uma das nações mais antigas da Europa, originária de eslavos que migraram da Galícia durante o século VII.

Católicos ortodoxos (herança bizantina), durante 400 anos, o país foi dominado pelo Império Otomano. Somente no século XX, o sonho de grandeza dos sérvios atingiu seu apogeu, com a criação da Iugoslávia, que incorporou Montenegro, Croácia, Macedônia, Bósnia e Kosovo. Com o colapso do socialismo no Leste europeu, porém, o plano da Grande Sérvia deu lugar à recidiva de sua “balcanização”, após os bombardeios da OTAN, em 1999. Até hoje, Kosovo e Metohija estão sob ocupação da ONU.

Nossos problemas nem de longe se comparam aos da Sérvia. À medida que vai convencendo o país que tem qualidade técnica e garra para disputar o título de hexa campeão do mundo, a Seleção Brasileira nos une na vitória. Na derrota, é outra história: espalha baixo-astral. Por isso, vamos para o mata-mata contra o México com medo de um revés, embora o time de Tite tenha jogado bem melhor do que nas partidas anteriores, inclusive Neymar, que não simulou faltas nem reclamou do juiz. Tiago Silva, Paulinho e, mais uma vez, Phillipe Coutinho foram heróis em campo. A vitória de ontem funcionou como uma espécie de antídoto contra as nossas decepções.

De onde vem essa chama da Seleção Brasileira, que incendeia os corações brasileiros? A rigor, vem da vitória canarinha de 1958, na Suécia, quando Pelé e Garrincha assombraram o mundo, num time que tinha ainda Gilmar, De Sorti, Bellini, Mauro, Nílton Santos, Orlando, Didi, Vavá e Zagalo, entre outros craques. O Brasil perdeu o complexo de vira-latas adquirido desde a derrota para o Uruguai, na Copa de 1950, em pleno Maracanã. O time azul-celeste é estraga prazeres; agora, derrotaram os anfitriões russos na fase classificatória.

Em 1958, nem o gol sueco que inaugurou o placar abalou a equipe. Didi pegou a bola e foi andando com ela debaixo dos braços até o meio de campo. O Brasil virou o jogo, ganhou por 5 a 2. Naquela época, o país vivia em clima de bossa-nova. O governo de Juscelino Kubitschek era democrático, empreendedor e esbanjava otimismo. O Plano de Metas pretendeu atuar em cinco setores da economia nacional: energia, transportes, indústrias de base, alimentação e educação. Houve crescimento em 100% na indústria de base. Brasília já estava em construção.

A vitória da seleção deu ao país mais confiança no futuro e coesão social, embora de forma momentânea, porque a inflação e o desequilíbrio cambial logo esgarçaram as relações na sociedade e acirraram a radicalização política, o que resultou mais tarde na renúncia de seu sucessor eleito, Jânio Quadros, e na deposição do vice-presidente que assumiu em seu lugar, João Goulart, em 1964.

O clima de ontem, em razão do jogo da Seleção, ainda é um ponto fora da curva. O esgarçamento social e a radicalização política são muito preocupantes. Pode ser que fiquem congelados por causa dos jogos, mas assim que a Copa terminar, mesmo que o Brasil seja campeão, darão o tom no processo eleitoral. A não ser que haja um realinhamento de forças políticas, que rompa a polarização direita-esquerda protagonizada pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) e pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa polarização, agora, está sendo alavancada por decisões contraditórias do Supremo Tribunal Federal (STF).

Iluminismo

Quem quiser que se iluda, a libertação de José Dirceu em meio à Copa do Mundo é uma espécie de amostra grátis do que pode acontecer com a Operação Lava-Jato após o recesso do Judiciário. A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também pleiteia sua libertação, que provavelmente teria ocorrido na terça-feira, se o ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato, não houvesse remetido o caso ao plenário da Corte. O argumento dos advogados de Lula é o mesmo que serviu de base para a libertação de Dirceu: a “plausibilidade recursal”. Eles querem suspender a execução da pena de 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado imposta ao ex-presidente da República, no caso do tríplex de Guarujá. Alegam cerceamento da defesa e exasperação da punição.

Uma mudança de rumo no Supremo, às vésperas das eleições, pode consolidar o cenário de radicalização política. O direito positivo aparta as decisões judiciais das questões morais, essa é a nossa cultura jurídica dominante. A Lava-Jato, entretanto, desnudou o patrimonialismo da nossa elite política e trouxe à luz uma grave crise ética, à qual os tribunais não têm como ignorar. O sujeito iluminista (“penso, logo existo”) é uma marca registrada da magistratura. Como ator político, porém, costuma ser um desastre, porque não é capaz de perceber nem liderar os movimentos da sociedade. Ainda mais uma sociedade como a nossa, com o cotidiano marcado pelas injustiças e pela desigualdade.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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