Kamala protagonizará um choque dramático entre dois Estados Unidos, o supremacista branco e o multiétnico, o conservador e o progressista, o provinciano e o cosmopolita, o “illiberal” e o democrático
No xadrez, o “roque” é a única jogada em que duas peças se movem simultaneamente. É uma manobra para proteger o rei, movimentando a torre, e abrir novas possibilidades ofensivas. As regras são as seguintes: o jogador só pode “rocar” se não tiver movido seu rei e sua torre (no lado onde deseja “rocar”); nenhuma peça pode ficar entre o seu rei e a torre do lado onde deseja fazer o “roque”; não se pode “rocar” quando se está em xeque ou através dele.
No xadrez da política americana, as regras são outras. A troca do presidente Joe Biden (o rei) pela sua vice, Kamala Harris (a rainha), como provável candidata do Partido Democrata, tirou a legenda de um iminente xeque-mate e possibilitou a retomada da iniciativa política, depois de uma crise dramática. Nas últimas semanas, o atual ocupante da Casa Branca desnudara sua incapacidade física e mental para enfrentar Donald Trump, ainda mais depois que o candidato republicano sobreviveu a um atentado em plena campanha e, na sequência imediata, escolheu um jovem para vice, o senador J.D. Vance, de 39 anos.
Pressionado pelo establishment norte-americano e as principais lideranças democratas, enquanto Trump esbanjava vitalidade, Biden convalescia de uma nova infecção de covid-19, sob fortes pressões para desistir da reeleição. Jogou a toalha no domingo e anunciou Kamala como sua substituta na corrida presidencial no mesmo dia. Recebeu apoio imediato de Bill e Hillary Clinton e de Nancy Pelolsi, a poderosa ex-presidente da Câmara de Deputados, mas ainda falta o apoio formal de Barack Obama e sua mulher, a carismática Michele, que não pretende ser candidata — e que hoje bate Trump nas pesquisas com 10 pontos de vantagem.
Entretanto, Kamala tem precedência na indicação e os democratas não têm tempo para uma disputa interna com realização de novas primárias, pois as eleições estão marcadas para 5 de novembro e Trump é favorito. Além disso, herda o cofre eleitoral de Biden já na largada.
Kamala protagonizará um choque dramático entre dois Estados Unidos, o supremacista branco e o multiétnico, o conservador e o progressista, o provinciano e o cosmopolita, o isolacionista e o globalista, o negacionista e o ambientalista, o “iliberal”e o democrático. Aprofunda-se a divisão do país, que remonta à Guerra da Secessão entre o sul confederado e a União.
Trump estava com o discurso na ponta da língua, tripudiando de Biden, por causa de sua fragilidade, embora seu governo tenha indicadores muito positivos. Perdeu o discurso, terá que enfrentar uma mulher negra e combativa, com as bandeiras da democracia e da ordem nas mãos, que exercerá um forte apelo identitário, sem a necessidade da retórica “identitarista”, como também fizera Obama para se eleger presidente dos EUA.
Força da natureza
Nunca uma mulher governou os EUA, nunca uma negra foi candidata democrata. Kamala é a reencarnação política de Shirley Anita St. Hill Chisholm (1924-2005), educadora e escritora, a primeira mulher negra a ser eleita ao Congresso dos EUA, em 1968. Exerceu sete mandatos, até 1983. Em 1972, tornou-se a primeira mulher negra a postular a Presidência dos EUA e a primeira mulher a concorrer ao cargo no Partido Democrata.
Shirley enfrentou dificuldades de organização e financiamento — sua campanha arrecadou apenas US$ 300 mil. Fez tudo para ser considerada uma candidata de verdade, mas foi descartada pelos democratas e ignorada até pela maioria dos homens negros. Recebeu apenas 3,5% dos votos nas primárias. Com 1.728 delegados, o senador George McGovern venceu a convenção e disputou a Presidência, sendo massacrado eleitoralmente por Richard Nixon, que disputava a reeleição. O filme Shirley para Presidente (Netflix) conta essa história.
Kamala é outra força da natureza, mas num contexto menos desfavorável. Inverte a equação da idade na disputa americana e confronta tudo o que existe de reacionário na campanha de Trump, o que o obrigará a mudar seu discurso, embora a lógica seja colar nela todas as críticas à gestão de Biden. Uma das acusações diretas do republicano contra a vice-presidente é ter acobertado a condição física do presidente.
Ex-procuradora, Kamala não é um ícone progressista do Partido Democrata. Seu nome historicamente está associado ao direito e à justiça, mas será alvejada por sua atuação na crise de imigração na fronteira com o México. A defesa do direito ao aborto também será usada contra ela, pois Kamala apontou os danos causados pela proibição da interrupção da gravidez e pediu ao Congresso a restauração das proteções do caso Roe x Wade, que garantiam o direito ao aborto nos EUA, até serem anuladas pela Suprema Corte, em 2022.
Entretanto, uma pesquisa realizada em abril pelo Pew Research Center mostrou que 63% dos adultos entrevistados disseram que o aborto deveria ser legal no país em todos ou na maioria dos casos, enquanto 36% afirmaram que deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos. Entre as pessoas que se declaram não afiliadas a nenhuma religião, os favoráveis ao aborto na maior parte dos casos chegam a 86%. Ao mesmo tempo, 73% dos evangélicos protestantes brancos acreditam que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos.
Kamala tem 59 anos, um forte contraste com Trump e conhece bem os meandros da política norte-americana. Recebeu o apoio de Gretchen Whitmer, governadora de Michigan, e de Gavin Newsom, da Califórnia, nomes cotados para substituir Biden até ele anunciar seu apoio a Kamala. Em boa forma e enérgica, ela pode virar o jogo.
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