A essência do fenômeno é o colapso de um modelo econômico e do modus operandi político em contradição com o Estado de direito democrático
“Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar que
por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
Justiça entre os homens e as nações (…)
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo (…)
É dentro de você que o Ano Novo cochila
e espera desde sempre.”
Tomo emprestado o antológico poema de Carlos Drummond de Andrade para começar a prosa sobre 2017, que será um ano difícil como foi 2016, no qual mergulhamos na crise que estamos vivendo. Trocamos de presidente — assumiu Michel Temer, que era substituto legal de Dilma Rousseff, escolhido vice pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ganhar as eleições de 2010 e de 2014, é sempre bom ressaltar —, mas continuamos na recessão e em plena crise ética. Por isso, 2017 será um ano difícil, mas devemos encará-lo com otimismo.
Qual a razão desse otimismo? É que estamos diante de uma situação na qual a verdade começa a se impor na hora de tomar decisões, sejam de caráter individual, como costuma acontecer com cada um de nós no começo do ano, sejam de natureza coletiva, envolvendo as instituições republicanas, essas, sim, mais complexas, difíceis e demoradas. Não é simples lidar com a verdade, ainda mais na chamada sociedade do espetáculo, na qual vigora a chamada “pós-verdade”, que nada mais é do que a narrativa falsa construída por meio das mídias e das redes sociais, para que a versão se imponha aos fatos.
Houve um momento da história no qual entrou em xeque o arcabouço construído por Santo Agostinho para articular, numa só doutrina, a filosofia aristotélica, a experiência romana e a fé cristã ao poder da Igreja. Galileu Galilei, graças ao telescópio refrator, comprovara que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário, como os sentidos humanos faziam acreditar. Naquele momento, a aparência e a essência dos fenômenos foram apartadas.
Os sentidos humanos perderam o monopólio da percepção das coisas, que passaram a ser observadas por artefatos construídos pelos homens. Toda a ciência moderna decorreu dessa ruptura. Mas o princípio da autoridade, um conceito político romano que se baseava na noção grega de medidas e regras transcendentes, se manteve. E a Igreja só continua sendo a principal instituição pública de caráter mundial, com a longevidade milenar das instituições romanas, devido à tríade: autoridade, religião e tradição.
Lava-Jato
A corrupção revelada pela Operação Lava-Jato é apenas a aparência de um fenômeno. A crise ética desnudou o funcionamento arcaico de nosso capitalismo, a resiliência do patrimonialismo, os privilégios do corporativismo e a cumplicidade da elite política com os métodos ilícitos de financiamento eleitoral. A essência do fenômeno é o colapso de um modelo econômico e do modus operandi político em contradição com o Estado de direito democrático. O que pôr em seu lugar? Esse será o grande debate nacional.
Desde o impeachment de Dilma, porém, nossas instituições republicanas estão sendo submetidas ao inédito teste de força em razão da Operação Lava-Jato, daí a “balbúrdia” jurídica, legislativa e, por que não dizer, administrativa. Mas a autoridade que as mantém é a da Constituição de 1988, que estabelece as regras do jogo da relação entre o Estado e a sociedade e as atribuições dos Poderes e instituições republicanas. Até agora, os militares são os que melhor compreenderam essa questão. Talvez porque tenham protagonizado todos os momentos de grande “balbúrdia” da história republicana até 1964 e, após 20 anos de regime militar, finalmente, aprenderam a lição. Caberá aos políticos conduzir o país até as eleições de 2018. O mais importante é chegar lá. Qualquer atalho seria um golpe contra a democracia.