“Bolsonaro vê em Mandetta um possível concorrente nas eleições de 2022. Mas, se o demitisse agora, estaríamos diante de uma tempestade perfeita”
No balanço do primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, recorri à obra clássica de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, para destacar que sua capacidade de lidar com as mudanças de cenário à frente da Presidência ainda estava por ser testada, sem jamais imaginar que fôssemos enfrentar uma pandemia como esta, que deixou o mundo de pernas para o ar. Uma combinação de Virtù (a coragem, o valor, a capacidade, a eficácia política) e Fortuna (a sorte, o acaso e as circunstâncias) viabiliza a chegada ao poder. A primeira exige talento pessoal para dominar as situações e alcançar um objetivo, por qualquer meio. O exercício do poder, porém, não depende exclusivamente das virtudes individuais, mas também das circunstâncias favoráveis.
Uma metáfora de Maquiavel descreve a situação: “Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, voltando à calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. O mesmo acontece com a Fortuna, que demonstra a sua força onde não encontra uma Virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las”.
A analogia é perfeita para a crise política que se arma em meio à epidemia de coronavírus, que alterou completamente as condições em que Bolsonaro governa. Sobre isso, Maquiavel havia advertido que o risco de chegar ao poder muito mais pela Fortuna do que pela Virtú é não conseguir mantê-lo quando as circunstâncias mudam, o que está acontecendo agora. De caso pensado, Bolsonaro tornou-se um fator de desestabilização do quadro político, extremamente tensionado por suas atitudes negacionistas da gravidade da pandemia e beligerantes com o Congresso, os governadores e os prefeitos, num momento em que o país precisa de coesão social e foco administrativo no enfrentamento da epidemia. As novas condições em que governa poderão selar a sorte de sua gestão, porém, Bolsonaro resolveu agir na contramão do que seria o bom senso político.
Sobrevivência
Nove entre 10 infectologistas defendem a política de distanciamento social para reduzir a velocidade de propagação da epidemia e evitar o colapso do sistema de saúde pública. A contrapartida disso é uma dura recessão, que já não depende exclusivamente do governo, pois é uma realidade inexorável em termos de economia mundial. A saída é garantir os meios necessários para os trabalhadores sobreviverem à retração das atividades econômicas, mantendo aquelas que são essenciais para o combate à epidemia e o abastecimento da população. A maioria compreendeu a situação e aderiu à palavra de ordem “#ficaemcasa”, que virou meme nas redes sociais em todo o mundo. Igualmente, nove de cada 10 economistas defendem a ideia de que o Estado precisa entrar em campo, pôr dinheiro em circulação e adotar medidas keynesianas para enfrentar a recessão, inclusive os liberais, como o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Bolsonaro se insurge contra isso e sabota a política adotada pelo Ministério da Saúde, por governadores e prefeitos, que é recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Estimula comerciantes a abrirem suas lojas e microempreendedores e trabalhadores informais, como ambulantes e prestadores de serviço, a voltarem às ruas para garantir o chamado leite das crianças. Na antessala da propagação exponencial da epidemia, que se tenta evitar a qualquer custo, é uma postura temerária e que visa, exclusivamente, manter o apoio de sua base social, ainda que coloque em risco a vida de muitas pessoas. Bolsonaro aposta na baixa letalidade da doença (em torno de 5%), mesmo correndo risco de esse percentual adquirir uma escala muito maior, em razão do colapso do sistema de saúde, quando deveria investir tudo na implementação das medidas de socorro aos mais pobres e no “orçamento de guerra”, em aprovação pelo Congresso. Como seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, insiste na política de isolamento social, resolveu fritá-lo publicamente.
Ontem, em Brasília, só se falava na demissão de Mandetta. O ex-ministro da Cidadania Osmar Terra (MDB-RS), que é médico e defende uma mudança de orientação no combate à epidemia, virou o principal conselheiro de Bolsonaro sobre o assunto. Segundo as pesquisas de opinião, porém, o ministro Mandetta lidera a população no combate ao coronavírus, com índices de popularidade muito acima dos de Bolsonaro. O ministro tem forte apoio no Congresso, comandado por seus correligionários Rodrigo Maia (DEM-RJ), na Câmara, e Davi Alcolumbre (DEM-AP), no Senado, e conta com a solidariedade dos colegas de Esplanada, inclusive os militares, que, ontem, o seguraram no cargo. No fundo, Bolsonaro vê em Mandetta um possível concorrente nas eleições de 2022. Mas, se o demitisse agora, estaríamos diante de uma tempestade perfeita: epidemia, recessão e crise política.