Nas Entrelinhas: Quando uma boa ideia começa a dar errado

Publicado em Brasília, China, Comunicação, EUA, França, Governo, Israel, Itamaraty, Memória, Política, Política, Reino Unido, Religião, Rússia, Saúde, Segurança, Terrorismo, Violência

China, França, Albânia, Equador, Gabão, Japão, Malta, Moçambique, Suíça e Emirados Árabes votaram a favor da proposta humanitária do Brasil. Rússia e Reino Unido se abstiveram, mas Biden se opôs 

A crise humanitária na Faixa de Gaza, em meio à guerra entre Israel e o Hamas, a organização que assumiu o controle do território quando o Exército israelita dele se retirou, expõe a olho nu a crise que a Organização das Nações Unidas (ONU) atravessa, desde a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003. À época, essa foi uma das respostas do governo norte-americano ao atentado da Al Qaeda às Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, a pretexto de que o ditador iraquiano Sadam Hussein estava produzindo armas químicas e de destruição em massa — cujos laboratórios nunca foram encontrados. Desde então, apesar das sucessivas intervenções militares do Ocidente, os grupos terroristas e fundamentalistas só aumentaram sua influência no Oriente Médio.

Ontem, depois de muitas negociações entre os 15 integrantes do Conselho de Segurança da ONU, os EUA vetaram a proposta de resolução que garantiria ajuda humanitária efetiva à população civil de Gaza, submetida a intensos bombardeios desde o ataque terrorista do Hamas ao território israelense. Foi o único país a se manifestar contra a ajuda humanitária das Nações Unidas.

No mesmo momento da reunião, o presidente Joe Biden se encontrava com o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau. Biden anunciou uma ajuda de US$ 100 milhões aos palestinos, ao mesmo tempo em que reiterou o apoio incondicional a Israel.

China, França, Albânia, Equador, Gabão, Japão, Malta, Moçambique, Suíça e Emirados Árabes votaram a favor da resolução proposta pelo Brasil. Rússia e Reino Unido se abstiveram, mas Biden se opôs ao texto, a pretexto de que a resolução deveria ser condicionada à libertação dos reféns israelenses em poder do Hamas. O governo brasileiro lamentou o veto e reiterou que “o Brasil considera urgente que a comunidade internacional estabeleça um cessar-fogo e retome o processo de paz”.

O embaixador do Brasil na ONU, Sérgio Danese, e o chanceler Mauro Vieira negociaram exaustivamente para construir uma resolução aceitável pelos EUA, cujos diplomatas chegaram a sinalizar que votariam a favor. Mas veio a ordem para impedir a aprovação da resolução.

Quais eram as propostas à mesa? Condenar os atos de terrorismo perpetrados pelo Hamas em Israel, em 7 de outubro; apelar para libertação imediata e incondicional de todos os reféns civis; conclamar a uma pausa humanitária a fim de permitir o fornecimento, rápido e desimpedido, da ajuda humanitária; exigir o fornecimento contínuo de bens essenciais para a população civil, como artigos médicos, água e alimentos; além de pedir a rescisão da ordem para que civis e funcionários das Nações Unidas evacuem toda a área em Gaza ao norte de Wadi Gaza.

Multilateralismo

Na presidência do conselho, o governo brasileiro lamentou que “o uso do veto tenha impedido o principal órgão para a manutenção da paz e da segurança internacional de agir diante da catastrófica crise humanitária provocada pela mais recente escalada de violência em Israel e em Gaza”. Ontem mesmo, Mauro Vieira viajou a Nova York para, entre outras atividades do conselho, presidir, dia 24, debate de alto nível dedicado à situação no Oriente Médio, inclusive a Palestina.

A reunião permitirá que países façam um novo chamado a um cessar-fogo e à abertura de corredores humanitários. Enquanto isso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em contato permanente com o presidente do Egito, Abdul Al-Sisi, e da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, tenta criar condições para que a ajuda humanitária chegue aos palestinos, e os brasileiros em Gaza possam ser resgatados. Os bombardeios de Israel buscam, deliberadamente, forçar o êxodo da população civil da Faixa.

Biden, que enfrenta dificuldades na campanha à reeleição, na crise de Gaza soma-se à posição radical do premiê Benjamin Netanyahu, que decidiu ocupar novamente a Faixa, a pretexto de liquidar o Hamas. O que está acontecendo, porém, é a ampliação da influência do grupo terrorista na Cisjordânia, o que enfraquece ainda mais a Autoridade Palestina. Uma nova intifada está em vias de ocorrer nessa região da Palestina, que é controlada militarmente pelo exército de Israel.

A situação humanitária e política está fora de controle, principalmente depois da explosão de um hospital em Gaza, que provocou centena de mortes. Segundo Israel, a causa foi um foguete disparado pela Jihad Islâmica, outro grupo terrorista palestino, que teria falhado. No mundo árabe, porém, ninguém acredita nisso.

A impotência da ONU se assemelha à situação da Liga das Nações às vésperas da II Guerra Mundial. É uma ideia boa que começa a dar errado. Os EUA não reconhecem o multilateralismo como a via mais adequada para a solução dos conflitos internacionais e insistem na manutenção de mundo unipolar, sob hegemonia norte-americana, que não pode se sustentar apenas em termos militares.