A direita deu a centralidade aos valores e costumes na disputa política, mas a esquerda também foi responsável por isso
Amparado em pesquisas de intenção de votos feitas pela Quest, por encomenda da Genial Investimentos, o livro “Biografia do abismo’, do jornalista Thomas Traumann, ex-ministro da Comunicação Social no governo Dilma Rousseff, e do cientista social Felipe Nunes, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conclui que a divisão entre direita e esquerda no país ultrapassou o cenário político e invadiu o cotidiano. Não se trataria apenas de uma polarização política normal em disputas eleitorais em dois turnos, mas na “calcificação” de uma divisão que teria invadido o cotidiano a ponto de cindir as famílias, impregnar os ambientes escolares e impactar as relações empresariais.
Essa conclusão seria corroborada por 27 rodadas de pesquisas quantitativas e relatórios de 150 grupos de discussão. A cisão é tão profunda que dos 9% dos pesquisados que se sentiriam mal caso um filho se casasse com alguém de perfil ideológico oposto, este percentual sobe para um terço um ano depois. A quantidade de consumidores que deixam de consumir determinada marca por motivos políticos passou de 1% para 13%. Os que mudariam o filho de escola caso em função de posições políticas subiu de 7% para 25% entre dezembro de 2022 e junho de 2023. Dos 17% de pesquisados que disseram ter rompido relações pessoais em função da campanha, 75% afirmaram que não se arrependiam.
Assim, o abismo do sectarismo, segundo os dois autores, calcificou a polarização de forma inédita, para além da disputa eleitoral. O fenômeno está diretamente relacionado às redes sociais e se organiza em bolhas, que reproduzem um cenário que ocorre nos Estados Unidos e diversos países da Europa, que também registram essa polarização. Segundo Nunes, “a extrema direita é diretamente responsável pela mudança da dimensão do conflito político. Antes da entrada dela, discutíamos temas como o papel do Estado, ser a favor ou contra privatização. A extrema direita passa a fazer uma disputa de visões de mundo e temas de foro privado, gerando um apartheid”.
A direita seria responsável por trazer valores e costumes para o debate, mas a esquerda também é responsável por isso, ao intensificar a questão identitária como se ela fosse o debate central na sociedade. Com isso, a direita se vê no direito de fazer a contraposição em torno das mesmas pautas. Entretanto, um recorte no tempo, para emoldurar a tese do livro, deveria levar em conta a Operação Lava-Jato, que galvanizou a opinião pública nas eleições de 2018.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, no decorrer daquela campanha, se apropriou da bandeira da ética, que tinha apoio majoritário na sociedade, ao passo que a esquerda, envolvida nos escândalos de corrupção, buscou refúgio nas pautas identitárias para voltar aos movimentos sociais que havia abandonado. Essa polarização acabou contribuindo também para a “calcificação” das bolhas do conservadorismo evangélico e do “partido da ordem” protagonizado por militares.
Eleições municipais
Com razão, em entrevistas sobre o livro, os autores têm destacado que tanto o slogan do governo, União e Reconstrução, como a reação institucional à tentativa de golpe de 8 de janeiro, são positivos para combater a radicalização extremada, mas o “nós contra eles” permanece predominante no debate público e deve se reproduzir novamente em 2026. O que diferenciaria os lados é que um deles tenta aniquilar, destruir, acabar com o outro, com métodos autoritários. Ou seja, enquanto a esquerda faz o jogo democrático, a extrema direita, não o faria necessariamente.
Nesse ambiente, que não será superado tão cedo, o debate político-ideológico radicalizado continuará sendo central, ainda que as forças políticas de centro evitem dele tomar parte, como se fosse possível capitalizar o desgaste recíproco das forças que apoiam o governo Lula e as que se opõem a ele, sob a liderança de Bolsonaro. Mas podem ter um papel fundamental, ao exigir o respeito às regras democráticas. Essa talvez tenha sido a variável decisiva no segundo turno das eleições passadas, que deu vitória a Lula por estreita margem de votos.
“Não existe mais o Brasil, existe o ‘Lulanaro’, dois universos completamente diferentes, um dos adeptos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, outro do ex-presidente Jair Bolsonaro”, exagera Thomáz Trauman. Talvez as eleições municipais mostrem uma realidade política mais complexa, embora no plano nacional, indiscutivelmente, a polarização protagonizado por Lula e Bolsonaro persista e até se retroalimente, para conveniência de ambos.
A propósito, as eleições do próximo ano serão um laboratório para avaliar o grau dessa calcificação diagnosticada na “Biografia do Abismo” e que divide profundamente a sociedade brasileira. Num quadro multipartidários, no qual a maioria das prefeituras é controlada pelos partidos de centro – PSD (968), MDB (838), PP (712), União Brasil (564) –, será possível observar até que ponto o PL (Bolsonaro), com 371 prefeituras, e o PT (Lula), com 227, polarizarão as alianças locais na disputa por prefeituras, principalmente nas capitais.
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