Nas entrelinhas: Poderes da radicalização

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O poder não existe apenas no Estado e na figura de Bolsonaro. Também está disseminado na sociedade, por meio de um “micropoder” que se irradia, inclusive na família

A polarização política em curso no país, protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se deslocou do terreno das instituições políticas para a sociedade, antes mesmo de se iniciar o processo eleitoral propriamente dito, quando isso seria mais natural. É uma questão que merece atenção redobrada, porque diz respeito à convivência entre as pessoas, às vezes, em seu próprio ambiente familiar, o que gera um clima de intolerância e ódio muito perigoso na vida social.

Tradicionalmente, toda ou qualquer análise política parte da ideia de que o seu locus privilegiado é o Estado, onde se exerce o poder. Manter ou conquistar o poder é a chave para a polarização política. Numa democracia representativa, entre uma eleição e outra, essa disputa ocorre no âmbito da relação entre os partidos e as instituições; entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; na relação entre os entes federados – governadores e prefeitos; e no âmbito do Congresso Nacional: Câmara e Senado. Ocorre que uma polarização protagonizada por uma força extremista antissistêmica instalada no Poder, como é caso do governo Bolsonaro, de características bonapartistas, obviamente, rompe o equilíbrio da disputa nesses terrenos e atrai a sociedade para uma polarização
antecipada, na qual se confrontam forças a favor e contra a ordem democrática vigente.

É ao que estamos assistindo agora. Uma das dificuldades para análise desse quadro é que a situação foge aos paradigmas da política clássica, como em Maquiavel, Thomas Hobbes e
Stuart Mill. Embora o presidente Jair Bolsonaro use e abuse da sua autoridade formal, sua atuação é no sentido de desconstruir a ordem democrática criada pela Constituição de 1988 e compatibilizar o regime político com sua mentalidade saudosista do regime militar. O poder faz de sua política antissistêmica uma coisa assombrosa, que pode nos levar a um desastre muitas vezes maior do que a crise sanitária, cujo protagonismo, diga-se de passagem, Bolsonaro disputa com o próprio vírus da covid-19.

O poder não existe apenas no Estado e na figura soberana de Bolsonaro. Também está disseminado na sociedade, por meio de um “micropoder” que se irradia e se exerce em todos os lugares, inclusive na família. A junção dessas duas forças, o poder do presidente da República sobre a vida da sociedade e o poder das pessoas que o apoiam nos locais onde vivem e trabalham, faz do bolsonarismo um movimento agressivo, organizado e resiliente, com o qual a política tradicional não sabe ainda lidar, nem mesmo a esquerda enraizada nos movimentos sociais. O filósofo francês Michel Foucault, ao ampliar a lógica hobbesiana (todos abdicariam de sua liberdade em favor da paz civil), nos ajuda a compreender o fenômeno desse “micropoder”, que se exerce pela violência psicossocial, às vezes também fisicamente, das corporações sobre os trabalhadores; do patriarcado sobre as mulheres; das milícias sobre as comunidades; dos brancos sobre os negros (racismo estrutural) etc.

Família e religião
Na sua abordagem sobre o poder exercido fora do Estado, Foucault construiu até um conceito que tem tudo a ver com o momento que estamos vivendo: o “biopoder”. Classificar a homossexualidade como “perversão”, negar a eficácia das vacinas e do distanciamento social, disseminar o uso da cloroquina como placebo são manifestações desse “biopoder”, tanto quanto reduzir o sexo à reprodução e à saúde. Um dos méritos da CPI da Covid do Senado está sendo, por exemplo, deslocar o eixo da discussão sobre a crise sanitária para o terreno da política, desnudando a forma autoritária e irresponsável como a população está sendo tratada pelo atual governo e ao mesmo tempo a forma como esse “micropoder” é mobilizado por Bolsonaro.

Outro aspecto desse processo é a base popular que apoia Bolsonaro, desde a sua campanha eleitoral em 2018. O eixo de sua atuação é a defesa da família unicelular patriarcal, ameaçada pela mudança dos costumes e hoje até minoritária, embora sua própria família seja multicelular, como a maioria. Boa parte de sua resiliência eleitoral deriva daí, por isso mesmo está ancorada numa narrativa religiosa, machista e homofóbica, na qual a ideia de liberdade foi associada à justiça por conta própria e à posse indiscriminada de armas. A crise econômica e o grande número de mortes na pandemia erodiram parte dessa base, até porque o desemprego e a morte de provedores são fatores desestruturadores das famílias, principalmente de baixa renda, porém, a narrativa pátria, família e liberdade mantém- se eficaz para lançar à luta política e radicalizar os seus elementos mais conservadores e reacionários.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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