Num mundo de pernas para o ar por causa das mudanças tecnológicas e das guerras, esses jovens estão em busca de protagonismo
“Desde que recebera o panfleto, morrer passou a ter outro sentido, como se estivesse mais ligado à preocupação de continuar a viver do que à morte propriamente. Antes, a vida pesava-lhe como um fardo; somente em raras noites de domingo sentia algum prazer. O panfleto foi o primeiro apelo humano que lhe fora endereçado. Pela primeira vez, sentiu que alguém o solicitava com sofreguidão, precisava dele com urgência, de corpo e alma, alguém que não poderia viver sem ele. (…) Quando guardou o panfleto num bolso do uniforme, sabia ter encontrado, afinal, aquilo que procurava com inquietude e inconscientemente.”
Esse extrato do romance Os mortos permanecem jovens, de 1949, da escritora judia alemã Ana Seghers, ilustra o momento de tomada de consciência de um jovem soldado alemão sobre a violência do Estado e a guerra em plena trincheira da I Guerra Mundial. O livro é um manifesto pela paz, que correu o mundo durante a Guerra Fria. Não existe um herói no romance, apenas a necessidade do heroísmo para seguir vivendo, mesmo no isolamento dos que tentaram na Alemanha evitar a tragédia do nazifascismo em plena II Guerra Mundial. “Minha mãe, quantas vezes desejei voltar a esconder-me em teu ventre!”, exclama em outra estória, o jovem Hans, que tenta organizar um grupo dissidente dentro da Juventude Hitlerista.
As exéquias de Fidel estão pleno curso em Havana. É inevitável a comparação com Che Guevara, morto precocemente nas serras da Bolívia, o grande mito do herói revolucionário e ícone da juventude, não importa os erros ou até mesmo os crimes que tenha cometido. Nem de longe a imagem de Fidel, que morreu de morte morrida, tem o mesmo simbolismo. O julgamento de Che pela história foi feito com base na luta contra as ditaduras da América Latina; o de Fidel, ao contrário, será à luz do regime socialista à moda soviética que implantou em Cuba, a ferro e fogo. Che permaneceu jovem; Fidel morreu como um ancião.
Invoco a obra de Ana Seghers em razão dos incidentes de ontem na Esplanada dos Ministérios. Estudantes entraram em conflito com policiais militares durante protesto contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que limita os gastos do governo pelos próximos 20 anos. Jogaram coquetéis molotov, viraram carros, fizeram barricadas com sanitários químicos, quebraram orelhões, depedraram prédios públicos, enquanto a polícia usava spray de pimenta e jogava bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral num confronto que durou horas. Foi uma situação parecida com as de 2013, no Rio de Janeiro, nas proximidades do Maracanã, e em São Paulo, perto da Praça da República. Em ambos os casos, eram jovens estudantes que protestavam, a maioria secundaristas.
O protesto de ontem foi motivado pela votação da chamada PEC do teto dos gastos no Senado; o quebra-quebra começou quando o senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE) lia o seu parecer em plenário. A proposta em análise no Senado estabelece que as despesas da União (Executivo, Legislativo e Judiciário) só poderão crescer conforme a inflação do ano anterior. O texto é considerado pelo governo um dos principais mecanismos para garantir o reequilíbrio das contas públicas. Enfrenta, porém, oposição de estudantes e professores, principalmente. Pelo texto da PEC, se um Poder desrespeitar o limite de gastos, sofrerá, no ano seguinte, algumas sanções, como ficar proibido de fazer concurso público ou conceder reajuste a servidores.
Qual futuro?
Durante a sessão, Gláucia Moreli, presidente da Confederação das Mulheres do Brasil, invadiu o plenário, protestou contra o texto e foi retirada por agentes de segurança, mas recebeu apoio dos senadores petistas Lindbergh Farias (RJ), Regina Sousa (PI) e Paulo Paim (RS). “Nós queremos as verbas da saúde, da educação. O orçamento da União ano passado foi destinado a banqueiros e só 5% para a saúde. Como vai ficar quem precisa de saúde e educação públicas? Ainda mais agora, com 13 milhões de desempregados”, disse Gláucia, após ser retirada do plenário. Essa narrativa é falsa, o teto não reduz os gastos com a educação e a saúde, pois os recursos destinados às duas áreas serão estabelecidos na discussão do Orçamento. Mas há uma grande verdade no que ela falou: o desemprego, que já atinge 30% dos jovens.
Talvez a imagem de Che Guevara motive muito mais os jovens radicais do que a PEC propriamente dita. Mesmo sem ditadura, nem guerra fria, qual o futuro que está sendo oferecido a essa geração? Em crise de identidade, sem representação política à altura, num mundo que está de pernas para o ar por causa das mudanças tecnológicas e das guerras, esses jovens estão em busca do seu próprio protagonismo na história. Como o jovem médico argentino que virou guerrilheiro em Cuba. A política brasileira, infelizmente, tem muito pouco a oferecer a eles, em meio à crise ética e à desmoralização de suas principais lideranças. Com toda certeza, os incidentes de ontem alimentarão mais protestos. E não faltarão, entre os jovens que protestam, aqueles que, sem outra perspectiva, talvez desejem permanecer eternamente jovens. É esse o perigo.
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