O velho patronato político, que depende do voto, resolveu pôr na roda a alta burocracia e as corporações. É briga de cachorro grande
Em pleno governo de Juscelino Kubitschek, quando o Brasil vivia os anos dourados da década de 1950, o jurista gaúcho Raymundo Faoro lançou Os Donos do Poder, formação do patronato político brasileiro (Editora Azul), um painel do regime político, do Estado, da sua elite política e dos eleitores brasileiros, mas sua crítica ao status quo, naquele ambiente, passou despercebida. Nem de longe teve a repercussão de obras como Os Sertões, de Euclides da Cunha (1902), Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda, a santíssima trindade dos intérpretes do Brasil.
“O poder — a soberania nominalmente popular — tem donos que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. (…). E o povo, (…) que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas (…). A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou”, disparou Faoro para ouvidos moucos. O livro somente veio a ser reeditado em 1975, quando o jurista, que havia apoiado o golpe militar de 1964, já era uma das vozes importantes da oposição. Na presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dois anos depois, defendeu as liberdades de opinião, manifestação e organização, denunciou as torturas nos porões do regime militar e patrocinou a campanha da anistia.
O “tipo ideal” de sua obra é o conceito de “patrimonialismo estamental”, que serve de linha condutora para a análise da formação do Brasil de Dom João VI a Getulio Vargas. Segundo Faoro, essa estrutura política e social resistiu a todas as transformações fundamentais. O conceito weberiano, uma novidade na historiografia da época, porém, foi atacado por marxistas e não marxistas, pois subvertia os critérios até então adotados na interpretação da realidade brasileira. Ainda mais no contexto de radicalização política que antecedeu o golpe militar de 1964, na qual se colocava à direita.
A obra de Faoro, porém, delimita uma estrutura de poder assegurada por privilégios jurídicos e pela tradição, com uma capa social rígida, capaz de se adaptar às demandas e movimentos da política e da sociedade. Esse estamento forma no interior de instituições do Estado, grupos econômicos, instituições privadas, políticos, aliados ou legitimados pelo Estado e suas tradições. É um arranjo que engendra um Estado patrimonial autárquico, que só pensa em si e se coloca acima da sociedade, embora sustentado por ela.
Eis que essa questão está posta novamente para a sociedade brasileira, com o debate sobre o teto dos gastos e a reforma da Previdência. Quis o destino, por linhas tortas, que o debate fosse aberto por um governo de transição, o de Michel Temer, e por um Congresso acuado por denúncias de corrupção contra alguns de seus líderes, após um traumático processo de impeachment. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece um teto para o aumento dos gastos públicos pelas próximas duas décadas foi aprovada na noite de segunda-feira pela Câmara dos Deputados, em primeira votação, por 366 votos a favor e 111 contrários. Na próxima semana voltará ao plenário. O Senado deve concluir sua aprovação até o final do ano, a tempo de vigorar no próximo orçamento da União. É jogo jogado.
Privilégios
Animado com o sucesso do governo, o presidente Michel Temer anunciou ontem que pretende encaminhar a reforma da Previdência ao Congresso na próxima semana. “Não haverá mais distinção entre a Previdência geral, dos trabalhadores, e a Previdência pública, dos trabalhadores do serviço público. Nós temos que igualar isso, e esse é um ponto que já está definido”, disse. As novas regras não foram divulgadas oficialmente, mas já se sabe que o eixo da reforma é a definição de uma idade mínima de 65 anos para as aposentadorias, com uma contribuição de pelo menos 25 anos, além de um prazo de transição de 20 anos para mulheres e professores e 15 anos para homens, tanto para trabalhadores do setor privado como para funcionários públicos, mantendo-se o regime especial para militares. A fórmula de cálculo do benefício também deve sofrer alteração. Outro ponto envolve a pensão por morte, que deixará de ser integral. O Grupo de Trabalho da Previdência propõe que seja de 50% ou 60% do salário do falecido, mais 10% por dependente.
A crise tríplice – econômica, política e ética – não se resolveu com o impeachment. A recessão e o rombo fiscal ameaçam pôr em colapso milhares de prefeituras, a maioria dos governo estaduais, os serviços da União e o sistema previdenciário. A sociedade deu seu recado nas ruas e nas eleições municipais e toma consciência de que carrega nas costas um fardo muito pesado, no qual o velho patronato político se locupletou e as corporações do serviço público acumularam privilégios. São os verdadeiros donos dos cofres públicos, ao lado dos interesses privados que sequestraram as políticas públicas com subsídios, isenções e contratos superfaturados. Austeridade e eficiência estão na ordem do dia, ao lado de ética na política e oportunidades iguais. Com a sobrevivência ameaçada, o velho patronato político, que depende do voto, resolveu pôr na roda a alta burocracia e as corporações. É uma briga de cachorro grande, com a qual o cidadão comum sairá ganhando.
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