Ao contrário da Câmara, que tratou do impeachment a toque de caixa, o Senado vai mais devagar com o impeachment de Dilma
Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra, vai pela serra, vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar
Pode ser uma viagem, mas as longas e repetitivas sessões da comissão especial do Senado para discutir a admissibilidade do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff dão vontade de fechar os olhos e ouvir O Trenzinho do Caipira, do maestro Heitor Villa-Lobos, um trecho da peça Bachiana Brasileiras nº2, no qual a orquestra imita os sons de uma locomotiva e tudo aquilo que vai encontrando pelo caminho. Com interpretações magistrais de alguns artistas brasileiros, entre os quais Adriana Calcanhoto, Edu Lobo, Egberto Gismonti e Maria Bethania, a viagem ganha outra dimensão com a letra de Ferreira Gullar, um trecho do Poema Sujo, na qual o espaço e tempo se misturam ao longo da viagem do menino.
O músico captura a transição do rural para o urbano, do tradicional para o moderno, enquanto o poeta tece as imagens desse processo — vida, ciranda, destino, noite, campo e cidade — com o linguajar característico dos brasileiros. Como seria bom se o parlamento fosse realmente uma tradução mais democratica da sociedade, não uma representação distorcida pela forte presença do transformismo partidário e do cretinismo parlamentar. Villa-Lobos abrasileirou as nomenclaturas da música na Bachianas brasileiras nº 2, divida em Prelúdio (O canto do Capadócio); Ária (O canto de nossa terra); Dança (Lembrança do sertão); e Tocata (O trenzinho do caipira). O último movimento deu origem à canção popular.
Por que as enfadonhas discussões da comissão especial do impeachment no Senado podem nos remeter à tocata brasileira? Compostas para piano, nas tocatas uma das mãos desliza de forma virtuosa pelo teclado enquanto a outra o acompanha com acordes. No Trenzinho do Caipira, Villa-Lobos e Gullar traduziram para a alma brasileira o barroco e o romântico, mas sobretudo Bach, cujas tocatas adquiriam a forma de fuga. Talvez esteja aí a chave: na composição musical, um tema é repetido por outras vozes que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada. Começa com um tema, declarado por uma das vozes isoladamente. Uma segunda voz entra, então, “cantando” o mesmo tema, mas noutro tom; enquanto a primeira voz continua, uma terceira faz o contraponto. As vozes restantes entram, uma a uma, cada uma iniciando com o mesmo tema.
É isso, uma fuga pra frente. O debate no Senado é uma tentativa de retirada organizada dos petistas e de seus aliados do poder, sem olhar para trás, brandindo a bandeira da defesa da democracia, supostamente ameaçada por um “golpe de Estado”. Tudo isso para cavar trincheiras nas eleições municipais e tentar chegar, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, às eleições de 2018 em condições de voltar ao poder.
Enquanto isso, a presidente Dilma Rousseff ateia fogo às vestes no Palácio do Planalto. A propósito, Wolfgang Amadeus Mozart compôs uma dupla fuga barroca, o Kyrie Eleison, no Réquiem em Ré menor; e Ludwig van Beethoven, na Missa Solemnis, também compôs uma fuga magistral no final do “Credo”.
Ao contrário da Câmara, que tratou do impeachment a toque de caixa, com uma votação final num domingo, depois de uma maratona de sessões, o Senado vai mais devagar com o andor. Elegeu a comissão especial na segunda-feira, instalou-a na terça e estabeleceu seu cronograma na quarta; na quinta, ouviu os autores do pedido de impeachment, os juristas Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, e, na sexta, a defesa da presidente Dilma, representada pelos ministros José Eduardo Cardozo (Advocacia-geral da União), Nélson Barbosa (Fazenda) e Katia Abreu (Agricultura). Repete-se a ladainha da comissão especial da Câmara, uma exigência do novo rito de impeachment aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com a diferença que houve uma trégua. Ao contrário dos deputados, a desafinada orquestra do Senado não quis trabalhar no fim de semana.
Viva o Primeiro de Maio! Pena que caiu no domingo.