Nas entrelinhas: O sincericídio

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Torquato afirmou que toda a linha de comando da PMRJ precisa ser investigada, o que provocou um princípio de rebelião na corporação, que obteve solidariedade das autoridades locais

O ministro da Justiça, Torquato Jardim, está com a cabeça a prêmio, mas não caiu, porque pôs o dedo na ferida do problema de segurança pública no Rio de Janeiro, que é muito mais complexo do que as autoridades locais admitem. Criticado por apontar o envolvimento dos comandantes da Polícia Militar com o crime organizado, voltou à carga ao desafia-las a desmenti-lo. Torquato afirmou que toda a linha de comando precisa ser investigada, o que provocou um princípio de rebelião na corporação, que obteve solidariedade das autoridades locais, principalmente do governador Fernando Pezão (PMDB-RJ), do presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani (PMDB), e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que está em viagem ao exterior.

Disse o ministro: “Nós temos informação: R$ 10 milhões por semana na Rocinha com gato de energia elétrica, TV a cabo, controle da distribuição de gás e o narcotráfico. Em um espaço geográfico pequeno. Você tem um batalhão, uma UPP lá. Como aquilo tudo acontece sem conhecimento das autoridades? Como passa na informalidade? Em algum lugar, voltamos à Tropa de Elite 1 e 2. Em algum lugar alguma coisa está sendo autorizada informalmente”, afirmou o ministro. Torquato se baseou em relatórios de inteligência da Polícia Federal e, provavelmente, das Forças Armadas.“Existe um serviço de inteligência sobre tudo que eu falo. Todo serviço de inteligência é sigiloso. Você não pode dizer quem, quando, como”, destacou.

Para o núcleo político do governo, foi um sincericídio do ministro. O Palácio do Planalto tenta gerenciar a crise para não sair com a imagem arranhada do episódio; os políticos fluminenses, responsáveis pela segurança pública estadual, da qual não dão conta, porém, cobram uma retratação do ministro, que não virá, porque seria sua desmoralização. Torquato foi ao centro da questão: a simbiose entre o crime organizado e a chamada banda podre da polícia. O que acontece nas favelas do Rio de Janeiro é um pacto corrupto entre traficantes e policiais militares, que vai muito além da venda de drogas e da segurança do comércio local. Envolve uma rede de serviços e atividades comerciais da economia informal.

A ponta deste iceberg é a taxa de homicídios não investigados. A economia informal não tem título em cartório, funciona no fio do bigode. A mesma regra que vale para o “avião” que deu um “banho” no traficante, vale para quem tomou dinheiro emprestado e não pagou ao agiota: a cobrança é feita à mão armada. Quem olha para o alto e vê aquele incrível emaranhado de fios sobre as ruas e becos não imagina como funciona a rede de tevê a cabo. Muito menos a distribuição de gás e o serviço de mototáxi. Existe uma economia informal de grande envergadura nas “comunidades” cariocas, boa parte controlada por milícias formadas por policiais expulsos da corporação por conduta indigna e criminosa.

O comércio e os empreendimentos da Rocinha, por exemplo, movimentam R$ 13 bilhões por ano. Tem mercado, farmácia, lotérica, concessionária de moto, rede fast-food e até shopping. Há mais de 6.500 empresas e empreendedores locais, cujas relações comerciais são predominantemente informais. Para que tudo funcione, na ausência de infraestrutura e serviços organizados, as soluções encontradas são pactuadas com quem tem o controle geográfico da região: a polícia controla o fluxo de entrada e a saída do morro; os traficantes, as partes altas e seus acessos. A crise explode quando os pactos são rompidos de um lado ou de outro, seja por uma troca de comando, seja por uma disputa entre traficantes.

Tensão

Ocorre que a entrada em cena das Forças Armadas gerou uma mudança de paradigma, por causa das operações de inteligência, que passaram a ser mais ativas, até por uma necessidade de planejamento das operações. Mesmo assim, as realizadas até agora foram prejudicadas por vazamentos de informações atribuídos à Polícia Civil e à Polícia Militar. Essa foi a principal razão da criação da força-tarefa que vai investigar o crime organizado no Rio de Janeiro, depois de enfáticas declarações do ministro da Defesa, Raul Jungmann, sobre a influência do crime organizado na política fluminense. A escolha do Ministério Público Federal para liderar as investigações teve objetivo de reduzir ao máximo os vazamentos; porém, não agradou à Polícia Federal, que pretendia estar à frente dos trabalhos. A disputa é antiga, mas nunca impediu as operações.

A tensão aumentou com a morte do comandante do batalhão do Méier, coronel Luiz Gustavo Teixeira, na semana passada, até agora não explicada direito. O governador Luiz Fernando Pezão resolveu interpelar judicialmente o ministro no Supremo Tribunal Federal, o que esticou a corda de vez. A conclusão é de que não haverá cooperação entre a força-tarefa federal e as autoridades locais se o ministro da Justiça não se retratar das declarações. Torquato, porém, não recuará.

Publicado em 02 de novembro de 2017

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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