O discurso na ONU foi uma tentativa de se apropriar do sentimento de brasilidade, da mesma forma como fez com a Bandeira brasileira e as comemorações do Bicentenário da Independência
O presidente Jair Bolsonaro discursou, ontem, na abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos, como é de praxe no cerimonial do órgão, desde a sua criação no imediato pós-II Guerra Mundial, embora não exista nada escrito que o Brasil deva ter essa honraria no seu regimento. Descreveu um país que não é exatamente aquele no qual estamos vivendo, com o claro propósito de aproveitar a oportunidade para se apresentar aos eleitores como um estadista reconhecido internacionalmente e, ao mundo, como um governante generoso e bem-sucedido. A abertura, porém, foi esvaziada pela ausência do presidente dos EUA, Joe Biden, que mudou a agenda e só falará hoje.
O discurso de Bolsonaro foi mais um gesto para se apropriar do nosso sentimento de brasilidade, da mesma forma como fez com a bandeira brasileira e as comemorações do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro, que descreveu no discurso como “a maior demonstração cívica da História do país”. Descendente de italianos, Bolsonaro é um “oriundi” traduzido, no conceito antropológico do termo, como acontece com a maioria dos brasileiros descendentes de europeus, que não renegam a cultura de seus povos de origem nem assumem uma condição “chauvinista”, colocando-a acima da nossa cultura popular.
A dificuldade de Bolsonaro está em não compreender plenamente o conceito de “brasilidade”, a qualidade de quem é brasileiro, que está profundamente associado à nossa diversidade étnica e cultural. O “ser brasileiro” não é uma invenção das antigas elites escravocratas nem das escolas militares, mas uma construção multidimensional, por meio da arte, da dança, dos ritos, da música, da culinária, dos símbolos e, principalmente, da nossa literatura, que fez a crítica dos nossos hábitos e costumes, papel hoje exercido pela nossa teledramaturgia. Num país continental, não poderia ser diferente.
Quando um brasileiro acredita que somos “o melhor país do mundo”, não está se referindo a um governo ou à conjuntura, mas aos vínculos culturais mais profundos, tecidos ao longo de gerações. Iniciado após a Independência, em 1822, o processo de constituição da identidade nacional somente consolidou-se a partir da década de 1930, após Getúlio Vargas chegar ao poder. Está ligado à constituição de um Estado nacional moderno e à língua portuguesa, falada em todo o território nacional. Daí a importância da nossa literatura, hoje tão desprezada. As obras de José de Alencar, autor de O Guarani, por exemplo, foram fundamentais para associar nossa identidade às belezas naturais do território e à presença indígena na formação da nação brasileira.
Na contramão
Os Sermões, de Padre Vieira; Inocência, de Visconde de Taunay; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Macunaíma, de Mário de Andrade; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Jubiabá e Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado; Navalha na Carne, de Plínio Marcos, por exemplo, construíram um mosaico cultural cujo influência na música, na dramaturgia e nas artes plásticas perdura hoje. Artistas como Tarsila do Amaral, Chiquinha Gonzaga e Ivone Lara, Cartola e Paulinho da Viola, Chico Buarque e Tom Jobim, Caetano e Gil, Cazuza e Renato Russo, cada qual à sua época, foram intérpretes desse sentimento profundo de brasilidade.
O “melhor país do mundo” está no imaginário popular, não estava no discurso que Bolsonaro fez ontem na ONU, onde afirmou que 80% da Floresta Amazônica permanecem intocados: “Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, que se encontra exatamente como estava quando o Brasil foi descoberto, em 1500”. No mesmo dia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que o número de queimadas registradas na Amazônia, até ontem, já superou o total registrado em todo o ano de 2021. Em nove meses incompletos (261 dias), foram 76.587 focos de incêndio na região. No ano passado inteiro, foram 75.090.
Bolsonaro é o principal responsável pelo aumento do desmatamento da Amazônia, ao desmantelar órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes, além de estimular garimpeiros, pecuaristas e madeireiros a avançar floresta a dentro. A Amazônia Legal, com 59% do território brasileiro, ocupa nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e uma parte do Maranhão. Na semana passada, por causa das queimadas, a fuligem e o cheiro das queimadas foram sentidos de São Paulo ao Rio Grande do Sul. A política ambiental de Bolsonaro está na contramão da política ambiental preconizada pela ONU e, hoje, é um dos principais fatores do nosso isolamento internacional.