Bolsonaro é um surfista da onda conservadora liderada pela extrema direita, que se formou no mundo a partir das frustrações sociais engendradas pela globalização
Na avaliação dos 100 dias do governo Lula 3, uma simples pergunta justifica a afirmação que intitula esta coluna: como seriam esses 100 dias se o ex-presidente Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito? Não é preciso muita imaginação para responder: teria sido a consolidação do seu projeto de governo “iliberal”, cuja principal tarefa seria subjugar o Supremo Tribunal Federal (STF). É o que está acontecendo em Israel, que vive uma crise política sem precedentes.
Aliado de primeira hora de Bolsonaro, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, voltou ao poder e pretende fazer uma polêmica reforma judicial, que dará mais poder ao Executivo em detrimento do Judiciário. Além da oposição de grandes manifestações populares em defesa da democracia, o premier não tem o apoio dos militares ao golpe iliberal que pretende realizar. Ontem, Netanyahu anunciou que o ministro da Defesa, Yoav Gallant, que havia demitido, permanecerá no cargo. No mês passado, o militar havia afirmado que a reforma do Judiciário estava colocando em risco a segurança de Israel.
Bolsonaro é um surfista da onda conservadora liderada pela extrema direita, que se formou no mundo a partir das frustrações sociais engendradas pela globalização. Em alguns lugares, o “iliberalismo” se apresentou como política de governo, como nos Estados Unidos, com Donald Trump, e na Itália, pelo vice-primeiro-ministro Matteo Salvini. Em outros, se institucionalizou como regime político, como na Rússia, de Vladimir Putin; na Turquia, de Tayyip Erdogan; e na Hungria, de Viktor Urban, que cunhou a expressão “democracia iliberal”, como se as duas coisas fossem compatíveis.
A onda foi contida pelas vitórias de Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos e de Emmanuel Macron na França, que influenciaram a eleição de Lula, mas isso não significa que a democracia ocidental não esteja mais sob ataque. Muito pelo contrário, Trump continua sendo a principal liderança do partido Republicano, e Macron está derretendo, devido à reforma da previdência que eleva de 62 para 64 anos a data mínima para a aposentadoria, independentemente do tempo de contribuição.
Segundo o cientista político Alberto Aggio: “A agenda iliberal é basicamente reacionária frente às instituições da democracia representativa, com questionamentos aos institutos de controle do Estado democrático, desqualificação dos partidos políticos e deslegitimação dos atores políticos, sociais e culturais, em confrontação com o pluralismo político. Na disputa política, busca se sustentar a partir da construção mítica de um líder, carismático ou não, como o ‘verdadeiro’ representante da Nação enquanto os outros atores políticos são tratados como ‘inimigos do povo'”.
Nova guerra fria
Uma interpretação traiçoeira do “iliberalismo” é classificá-lo como uma forma de populismo de direita. Segundo Aggio, seria a admissão de que, diante do seu sucesso, a resposta mais efetiva seria apoiar um “populismo de esquerda”, o que acabaria jogando o tema democrático para uma posição subalterna na política. “Por esse caminho, o resultado seria embarcar na previsão de Steve Bannon, segundo o qual o “populismo é o futuro da política”.
A irrupção do “iliberalismo” tem a ver com as mudanças econômicas e sociais protagonizadas pela revolução tecnológica e a globalização, nas quais as democracias representativas do Ocidente enfrentam o desafio de modernizar a economia sem sacrificar os valores democráticos e suas conquistas sociais. Ao obter resultados econômicos mais rápidos, regimes autoritários do Oriente acabam se tornando uma tentação política para os países em desenvolvimento.
Não se pode ignorar nosso cenário. De um lado, a ameaça autoritária representada pelo ex-presidente Bolsonaro não foi de todo dissipada; de outro, a tentação de um “populismo de esquerda” como antídoto ao “iliberalismo” seduz setores de esquerda. Nesse aspecto, o velho nacionalismo pode se tornar uma armadilha econômica e/ou política.
No primeiro caso, o adensamento das cadeias produtivas do país à margem das cadeias de produção globais se esgotou como modelo de industrialização. No segundo, nos deslocaria do campo do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos e a União Europeia, para a esfera do eixo Rússia-China.
A diplomacia brasileira sabe andar na corda bamba da geopolítica internacional, mas as circunstâncias são novas, diante da guerra comercial entre os EUA e a China e a escalada de tensões provocadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia. Com certeza, o encontro do presidente Lula com Xi Jinping será observado com lupa por todas as chancelarias.
Em tempo: Alberto Aggio lança hoje, em São Paulo, seu novo livro, Ainda respira, a democracia sob ameaça (Appris), na Livraria Martins Fontes (Paulista), a partir das 18h.