Nas entrelinhas: O legado de Michel Temer que assombra o governo Lula

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Temer é reconhecido pelas elites do país como um bom presidente, devido às reformas que fez , assim como fora Itamar Franco. Desde que saiu do cargo, tem saudades do “Fora Temer!”

Na noite do dia primeiro de junho, quinta-feira, após a posse da nova direção da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), o ex-presidente Michel Temer, um dos palestrantes e convidado de honra do presidente da entidade, Vicente Martins Prata Braga (CE), circulava entre autoridades e demais convidados “feliz como um pinto no lixo” — como diria o falecido cantor Jamelão, o maior “intérprete” do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues.

Era um daqueles fugazes momentos de glamour e felicidade dos poderosos de Brasília, numa posse festiva à beira do Lago Paranoá, que começou com pompa e circunstância e acabou com todo mundo dançando. Temer fez uma palestra, participou da gravação de uma longa entrevista a alguns jornalistas e voltou para a festa. Circulou sorridente entre as mesas, tirou fotos com tietes, levou tapinha nas costas, reviveu o fascínio do poder sem a adrenalina que o “energizava” na Presidência da República.

Hoje, aos 82 anos, Temer é reconhecido pelas elites do país como um bom presidente, devido às reformas que fez nos seus dois anos de mandato, assim como fora Itamar Franco. Desde quando deixou o cargo, tem saudade do “Fora Temer!”, do qual se livrou, ironiza, mas não a pretensão de voltar à função.

A noite dos procuradores foi digna das colunas sociais, uma daquelas festas nas quais se confraternizam mesmo os inimigos figadais. Em nenhum outro lugar seria imaginável ver o sisudo ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no meio do salão, dançando com a vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão, à vista do corregedor do Conselho Nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, ministros de Cortes superiores; governadores e parlamentares. Que ninguém se iluda, em razão da radicalização política, esses momentos de confraternização dos poderosos de Brasília são cada vez mais raros.

A propósito da felicidade geral da República, o filósofo, matemático, físico, professor e bibliotecário Immanuel Kant (1724-1804), que viveu na época da Revolução Francesa e de George Washington na Presidência dos Estados Unidos, dizia que “nenhum princípio da lei válido pode ser baseado na felicidade” (Teoria e prática). Remetendo-se a Platão, dois mil anos depois, sustentou que a que “as ilusões variáveis e conflitantes a respeito do que é felicidade tornam impossível todos os princípios fixos, de modo que a felicidade, por si só, jamais pode ser um princípio aplicado às leis”. Por ironia, o poder não é sinônimo de felicidade, o próprio Temer que o diga.

A abordagem kantiana sobre o poder, que inspirou Hanna Arendt e outros filósofos mais contemporâneos, pode ser resumida em dois deveres de governo: proteger os direitos e as liberdades do povo como uma questão de justiça e promover a felicidade do povo, desde que pudessem fazê-lo sem diminuir os direitos e a liberdade das pessoas”. As teses liberais de Kant, porém, foram usadas para dar sustentação à agenda de reformas neoliberais da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, com o argumento de seria uma violação da liberdade individual esperar que o povo pague impostos para a felicidade de outros. Hoje, esse é um pensamento majoritário na nossa sociedade e no Congresso brasileiro.

Semipresidencialismo

Chegamos ao legado de Temer que atormenta o governo Lula. Três vezes presidente da Câmara e vice-presidente antes de assumir a Presidência, com o impeachment de Dilma Rousseff, o ex-presidente é um constitucionalista e um político experiente, capaz de discernir, como fizera Kant, aquilo que pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática. “O Executivo não governa sozinho, o poder é compartilhado com o Congresso. Desde a Constituição de 1988, ao longo do processo político, o presidencialismo se esfarrapou, sofremos dois processos de impeachment. Aceitei a realidade de que o presidente da República não governa sozinho, adotei o semi-presidencialismo na prática”.

Quando assumiu o poder, o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou capturar o Congresso, não através dos partidos, mas por meio da incorporação ao governo da representação corporativa que se consolidava no parlamento, principalmente de evangélicos, ruralistas, policiais e militares, amalgamados pela ação de uma extrema-direita ideológica. Não deu certo. Bolsonaro acabou capturado é pelo Centrão. Para evitar um impeachment, o preço foi entregar a Casa Civil para o senador Ciro Nogueira (PI), o presidente do PP, e o Orçamento da União para a Câmara, presidida por Arthur Lira (PP-AL).

O que era feito informalmente por Temer, passou a ser institucionalizado. Mais: houve aumento do valor das emendas impositivas de deputados, senadores e bancadas estaduais e um “orçamento secreto”, que blindou eleitoralmente a maioria dos atuais mandatários e fortaleceu ainda mais o Congresso na relação com o Executivo. Lira foi além: agarrou a proposta de semi-presidencialismo com as duas mãos e criou um grupo de trabalho para estudar o assunto na Câmara.

O presidente da Câmara já disse que nenhuma das reformas aprovadas pelo Congresso nos governos Temer e Bolsonaro será revertida pelo governo Lula, a exemplo do que ocorreu com o marco do saneamento. Depois da aprovação do novo arcabouço fiscal e da estrutura do governo, com modificações na área ambiental, Lira só tem compromisso com Lula para aprovar a reforma tributária. Os demais projetos serão negociados caso a caso. Lula foi eleito com 50,9% dos eleitores, o Congresso representa 100%, com uma maioria conservadora e antipetista. Lira pode apresentar a proposta de semi-presidencialismo na primeira crise institucional do governo. Seria uma alternativa a um novo processo de impeachment, que convulsionaria o país.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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