Nas entrelinhas: O homem que virou suco

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A saída de João Batista da Cultura não foi boa para o governo, a senadora Marta Suplicy (PMDB) recusou convite para voltar à pasta

O drama da resistência de um poeta popular diante de uma sociedade opressora, que o obriga a eliminar suas raízes, é simultaneamente uma alegoria do desenraizamento, da clandestinidade e do exílio, aos quais muitos dos opositores do antigo regime militar foram submetidos. Esse é o enredo do filme O homem que virou suco, do diretor João Batista de Andrade, lançado num momento decisivo da história política do país, após a anistia e o fim do bipartidarismo. Em 1981, a oposição ao regime militar já havia ganho as ruas, mas enfrentava a resistência terrorista dos porões da ditadura, cujo momento mais dramático foi o frustrado atendado à bomba do Rio Centro, em 30 de abril daquele ano.

Deraldo é um nordestino esclarecido que busca sobreviver em São Paulo apenas de suas poesias e folhetos, o que ainda hoje é comum na capital paulista. De camiseta, calção e chinelos, Plínio Marcos, o consagrado dramaturgo de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, por exemplo, era visto com frequência vendendo seus livros nos eixos São João-Ipiranga, São Luiz -Augusta, Angélica-Consolação. Tudo vai muito bem com o herói do filme, até ele ser confundido com um funcionário de multinacional que matou o patrão na festa em que recebeu o título de operário padrão.

Perseguido pela polícia, Deraldo perde a identidade e a cidadania. Para sobreviver, refaz a trajetória da maioria dos nordestinos numa grande metrópole: vai trabalhar na construção civil, aceita realizar serviços domésticos, vaga pelo metrô, sofre toda sorte de humilhação e violências. Até que resolve contar a história do assassino e escreve o livro O homem que virou suco.

Além de consagrar seu diretor, o filme revelou o grande talento de José Dumont, ao lado de Denoy de Oliveira, Raphael de Carvalho, Ruth Escobar e Dulcinéia de Moraes. Colecionou prêmios em festivais: Melhor Filme em Moscou; Melhor Ator (José Dumont) em Nevers (França); Prêmio da Crítica em Huelva (Espanha); Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Denoy de Oliveira) no Festival de Gramado; Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont) em Brasília; São Saruê da Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro; e Prêmio Qualidade (Brasil) no Concine.

Liquidificador
Na sexta-feira, para não virar suco na crise ética e política, João Batista de Andrade entregou sua carta de demissão ao presidente Michel Temer. Ministro da Cultura interino, pegou o boné porque já estava sendo moído pelo Palácio do Planalto, depois de uma queda de braços em torno da indicação do presidente da Ancine. Queria emplacar no cargo um nome de consenso no meio artístico: “A Débora Ivanov era a indicação de todas as entidades do cinema e também do Ministério da Cultura. O governo resolveu que vai nomear outra pessoa”. O candidato de preferência do presidente Michel Temer é Sérgio Sá Leitão, que já ocupa uma diretoria da Ancine.

O cineasta foi para a secretaria executiva do Ministério da Cultura a convite do ex-ministro Roberto Freire (PPS), a quem é ligado por laços partidários. Foi destacado membro do chamado “Setor Cultural” do antigo PCB, ao lado de outros cineastas, como Alex Viany, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos e Zelito Viana. Ex-secretário de Cultura de São Paulo, Batista presidia o Memorial da América Latina quando foi convocado por Freire, em meio à crise provocada pela barulhenta demissão do seu antecessor: o ex-ministro Marcelo Calero gravou uma conversa politicamente incorreta com Temer, na qual o presidente da República pedia que atendesse um pleito do ex-ministro da Articulação Política Geddel Vieira Lima, que também acabou caindo.
Batista pavimentou o caminho para Freire assumir a pasta, desarmando bombas junto à classe artística, na qual sempre foi muito respeitado. Com a saída do titular, a seu pedido, permaneceu à frente do ministério, interinamente, com toda a equipe que havia sido montada pelo presidente do PPS. O cineasta, porém, nunca foi um homem de aparelho partidário. Antes mesmo da saída de Freire, já se queixava das pressões do Palácio do Planalto em relação à Ancine.

Na semana passada, sua posição tornou-se insustentável. Temer mandou um oficial de gabinete ligar para o ministro interino e comunicar sua indicação para a presidência da Ancine, Sá Leitão. Batista já havia anunciado publicamente o nome de Débora Ivanov e disse ao auxiliar de Temer que a nomeação seria acompanhada de sua exoneração. A saída de João Batista não é uma boa notícia para o governo, ainda mais porque logo veio acompanhada da informação de que a senadora Marta Suplicy, que já foi ministra da Cultura, já havia recusado o convite para voltar à pasta. A bancada do PMDB na Câmara, agora, pleiteia o cargo para o deputado André Amaral (PB). Temer só pretende anunciar o próximo ministro quando voltar da viagem à Rússia.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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