“As mudanças no mundo colocaram em xeque a democracia representativa e os programas socialdemocrata e liberal, o que alimenta projetos autoritário e/ou populista de volta ao passado”
A três semanas das eleições, começam a se definir as alternativas reais de poder à esquerda e à direita na disputa pela Presidência da República, num processo de polarização e radicalização política que parece irreversível. A única possibilidade de barrá-lo seria o reagrupamento dos eleitores de centro em torno de uma candidatura mais robusta, o que parece cada vez mais difícil, em razão do esgarçamento político provocado pela disputa acirrada entre os candidatos que disputam essa fatia do eleitorado.
Na pesquisa Datafolha divulgada na sexta-feira, estava delineado este cenário: mesmo fora da campanha, hospitalizado, Jair Bolsonaro (PSL) atingiu 26% das intenções de voto, uma variação positiva de dois pontos, fruto da inércia de sua atuação nas redes sociais e, obviamente, do atentado à faca do qual foi vítima; o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), no vácuo do prestígio eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está preso, cresceu mais três pontos, confirmando o êxito da audaciosa estratégia petista, chegando ao mesmo patamar de Ciro Gomes (PDT), ambos com 13% dos votos.
Além de Ciro Gomes, tentam chegar ao segundo turno Geraldo Alckmin (PSDB), que oscilou de 10% para 9%; e Marina, que caiu de 11% para 8%, ou seja, a metade das intenções de voto que tinha em agosto (16%). João Amoêdo (Novo), Henrique Meirelles (MDB) e Álvaro Dias (Podemos), todos com 3%, completam a fragmentação do eleitorado de centro. Esses candidatos somam 23% dos votos, ou seja, o suficiente para levar um nome de centro ao segundo turno. Se adicionarmos os 13% de Ciro, teríamos uma fatia de 36% dos eleitores que rejeitam Bolsonaro e Haddad, ou seja, um candidato a um passo da vitória, como aliás mostram as simulações, até com folga. O esgarçamento das relações políticas entre esses candidatos, porém, dificulta a convergência de seus eleitores em direção ao centro no primeiro turno; é mais fácil os eleitores se dividirem em dois blocos e embarcarem na nefasta radicalização esquerda versus direita, no segundo turno.
Bolsonaro e Haddad protagonizam um grande déjà vu (eu já vi), expressão francesa que descreve a reação psicológica da transmissão de ideias de que já se esteve em algum lugar ou viu alguma pessoa. Isso não significa necessariamente que se tenha vivido a experiência. Segundo a neurociência, o cérebro possui a memória imediata, responsável, por exemplo, pela capacidade de repetir imediatamente um número de telefone e logo esquecê-lo; a memória de curto prazo, que dura algumas horas ou dias, mas pode ser consolidada; e a memória de longo prazo, que dura meses ou até anos, como a aprendizagem de uma língua. O déjà vu ocorre quando há uma falha cerebral: os fatos que estão acontecendo são armazenados diretamente na memória de longo ou médio prazo, sem passar pela memória imediata, o que nos dá a sensação de já haverem ocorrido.
Memória regressiva
Na eleição, politicamente, essa sensação é alimentada pela narrativa dos candidatos Bolsonaro e Haddad. O primeiro resgata a memória do regime militar, que somente os eleitores com mais de 50 anos efetivamente vivenciaram. Declarações recentes do vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, agravam essa sensação, porque ele defende um “autogolpe”, caso Bolsonaro assuma a Presidência e parece ter a fórmula pronta para isso: uma Constituição feita por notáveis, ou seja, outorgada, como as de 1824, de D. Pedro I; e a de 1937, do Estado Novo, da ditadura de Getúlio Vargas. Não vamos nem relembrar os atos institucionais do regime militar.
As declarações de Haddad também fomentam essa sensação, pois ele pretende fazer a roda da história andar para trás e recomeçar tudo outra vez, a partir do governo Lula, o que é no mínimo uma grande desonestidade intelectual. Promete altas taxas de crescimento e de geração de emprego, ao mesmo tempo em que pretende revogar o teto de gastos, a reforma trabalhista e não mexer na Previdência. Para isso, propõe varrer para debaixo do tapete os escândalos do “mensalão” e da Petrobras. E culpa o PSDB pelo fracasso do governo Dilma Rousseff, como se a disparada dos preços, o desemprego de 11 milhões de trabalhadores e a recessão de 4% de queda do Produto Interno Bruto não fossem responsabilidade de quem exercia o poder.
Da mesma forma, porém, as forças políticas de centro não podem responsabilizar Bolsonaro e Haddad pela situação em que se encontram, em particular o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, que até agora não demonstrou capacidade de representar a grande massa de eleitores que não desejam a radicalização política. Os escândalos desnudados pela Operação Lava-Jato atingiram também o PSDB, que se tornou uma legenda tóxica como o PT, mas sem a militância e um líder carismático como Lula. Além disso, há que se considerar o fato de que as mudanças em curso no mundo colocaram em xeque os fundamentos da democracia representativa e os programas socialdemocrata e liberal. Essa fragilidade programática, de certa forma, dificulta a ampla aliança de forças de centro e alimenta a sensação de volta ao passado, o déjà vu nacional-desenvolvimentista, autoritário e populista, proposto por Bolsonaro e Haddad.
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