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Nas entrelinhas: O dilúvio às vésperas das eleições gaúchas

Publicado em Brasília, Cidades, Comunicação, Economia, Eleições, Governo, Habitação, Justiça, Memória, Partidos, Política, Política, Religião, Rio Grande do Sul, Saúde, Transportes

O governador Eduardo Leite propõe adiar as eleições municipais para não perder o foco na reconstrução do estado. Não é uma ideia sem sentido

Na quarta semana de dilúvio no Rio Grande do Sul, que deixou 461 dos 497 municípios gaúchos debaixo d’água, um mar de lama e montanhas de entulhos tomam conta das cidades gaúchas onde as águas já baixaram. Não se sabe ainda quanto será o custo total nem o tempo necessário para reconstrução do estado. Enquanto as águas do Guaíba, acima da cota de inundação, descem muito lentamente, a Lagoa dos Patos ainda sobe e ameaça cidades vizinhas, entre as quais, Pelotas.

A imagem faz todo sentido. O Dilúvio é o nome do evento bíblico (Gênesis 7 e 8), que começou no ano de 2516 a.C. e continuou por 12 meses lunares e 10 dias, ou exatamente um ano solar. Segundo a Bíblia, foi um castigo divino provocado pela corrupção e pela violência, na nona geração de Adão. Deus, então, decidiu purificar a Terra. Havia apenas uma família fiel a Deus, a de Noé, “um homem justo e íntegro”.

Ao comando divino, Noé fez uma arca de 133 metros de comprimento, 23 de largura e 14 de altura. Deus ordenaria a Noé que entrasse na arca, levando com ele sua esposa e três filhos, com suas respectivas esposas, e os animais que pudesse. A chuva começa no 17º dia do segundo mês; quando para, as águas predominam, 15 metros acima, por meses. A arca só repousa em uma das montanhas de Ararate, 150 dias depois do início do Dilúvio. O solo só fica seco no primeiro dia do novo ano (Gênesis 8:13).

Segundo a narrativa bíblica, o Dilúvio foi universal e eliminou todos os homens, exceto Noé e sua família, que foram preservados na arca; ou seja, seríamos seus descendentes. Toda religião busca uma explicação para os fenômenos que fogem à constatação empírica. Desde os tempos mais primitivos, os seres humanos têm necessidade de explicar fenômenos naturais como chuva, vento, eclipses etc. Buscam respostas metafísicas, ou seja, além daquilo que se consegue ver e tocar.

O drama do Rio Grande do Sul tem dimensões bíblicas, porém as explicações são científicas. A subjetividade não está nos fenômenos climáticos, que já estavam sendo previstos, mas na política e no comportamento em relação à natureza. As chuvas agora se estendem a Santa Catarina, com oito municípios, onde a tragédia se repete, em estado de emergência: Passo de Torres, Sombrio, São João do Sul, Balneário Gaivota, Jacinto Machado, Maracajá, Araranguá, Rio do Sul.

Nunca o Sul do país viveu tamanha tragédia. Mais chuvas estão previstas. A economia gaúcha entrou em colapso, com lavouras destruídas e indústrias paralisadas, com perda de grande parte dos equipamentos; o comércio foi igualmente arrasado, com a destruição de grande estoque de mercadorias. Em muitos lugares, é impossível reconstruir moradias e/ou imprudente voltar às que restaram.

Foco na reconstrução

Nunca se viu tamanha destruição simultânea, embora tragédias provocadas por deslizamentos e enchentes, além de incúria e intervenções humanas desastrosas, sejam frequentes. Em todas as regiões, eventos climáticos e ocupação inadequada de várzeas e encostas registram ocorrências que devem servir de alerta para os governantes e a sociedade. Com o aquecimento global, todo o clima mudou, os oceanos subiram, as chuvas e as secas serão mais severas.

No caso do Rio Grande do Sul, há evidência de que os gaúchos não têm os recursos materiais, econômicos e físicos para enfrentar o problema, embora lhes sobrem energia e vontade política. O governador Eduardo Leite (PSDB) propõe adiar as eleições municipais para não perder o foco na reconstrução. Não é uma ideia sem sentido, embora favoreça prefeitos que não seriam reeleitos e prejudiquem os candidatos mais competitivos. O debate eleitoral passa necessariamente pela reconstrução do estado. Cabe à Justiça Eleitoral decidir o que fazer diante da realidade.

Quando as águas baixarem, uma eternidade bíblica para 540 mil desabrigados, será a vez de União, estado e municípios, que se desdobraram no socorro aos flagelados e abastecimento da população (água, comida e roupas secas), se organizarem para um planejamento racional, que leve em conta a experiência vivida por todos, as limitações dos recursos disponíveis e a necessidade de repensar o modo de reconstruir as cidades.

Cerca de 28% do investimento produtivo anual do Rio Grande do Sul (construção residencial, máquinas e equipamentos e infraestrutura), estimado em R$ 28,6 bilhões, foram perdidos. Quase metade (48%) das escolas estaduais foram destruídas ou estavam inundadas. Muitos hospitais e postos de saúde foram inutilizados. Mais de 90 trechos em 51 rodovias estaduais foram bloqueados. O principal aeroporto do país, o Salgado Filho, em Porto Alegre, dificilmente entrará em operação novamente antes de setembro.

Estima-se que a arrecadação do governo gaúcho cairá R$ 14 bilhões. Não há dinheiro suficiente para voltar à vida normal a curto prazo, mesmo com toda a ajuda da União. Os gaúchos passam mesmo por uma tragédia diluviana.

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