Nas entrelinhas: O democraticídio

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Os setores que adotam a narrativa do golpe não estão nem aí para os riscos de um colapso institucional. Querem apenas desestabilizar o processo

Um assunto mal resolvido pela esquerda brasileira é a questão democrática. Mesmo o falecido Carlos Nélson Coutinho, autor de a Democracia como valor universal, um dos fundadores do PSol, ficou no meio do caminho quando pôs um pé atrás em relação à democracia representativa. “Nada disso impede, contudo, que na teoria liberal moderna (que foi inteiramente assimilada pela hodierna social-democracia) se continue a afirmar que democracia é sinônimo de pluralismo e que a defesa da hegemonia de uma classe ou conjunto de classes é, por sua própria natureza, sinônimo de totalitarismo e de despotismo. A teoria socialista deve criticar a mistificação que se oculta por trás dessa formulação liberal: deve colocar claramente a questão da hegemonia como questão central de todo poder de Estado.”

Essa é a essência do pensamento dos setores de esquerda que insistem em classificar o impeachment da presidente Dilma Rousseff como um golpe de Estado e, a partir disso, buscam refúgio político junto à opinião pública. Pouco importa o que houve de errado, seja na condução da política econômica ou nas políticas sociais dos governos Lula e Dilma, seja quanto à roubalheira inacreditável que se instalou na Petrobras, nos fundos de pensão e na administração direta. A questão central é a luta pelo poder. Fazer autocrítica dos erros seria “dar munição aos golpistas”, ou seja, àqueles que apoiaram o impeachment. Assumir os crimes contra o patrimônio público, então, nem pensar. O que importa é passar uma borracha no passado e transformar essa linha divisória numa retinida da boia salva-vidas.

Eis a teoria: à democracia liberal, na qual a burguesia disfarça sua dominação por meio do “isolamento” e da “neutralidade” da burocracia estatal, deve se contrapor à “democracia de massas”, na qual uma nova burocracia, de baixo para cima, exerceria a hegemonia dos trabalhadores, para superação efetiva da dominação de uma restrita oligarquia monopolista. Como se deu na prática: conferências, conselhos e outros instrumentos de participação foram instrumentalizados para cooptar os movimentos sociais e legitimar a aliança da “nova burocracia”, formada por militantes políticos e sindicalistas, com as oligarquias políticas e empresas monopolistas, que tomou de assalto as estatais e fundos de pensão e construiu um pacto perverso para superfaturar contratos de obras e serviços e financiar a reprodução da sua hegemonia. Em nenhum lugar do mundo a esquerda praticou uma política tão monopolista, muito menos entregou na bandeja as políticas sociais universalistas aos grandes interesses privados, para se locupletar com dinheiro público e sedimentar sua base eleitoral junto aos mais pobres e desorganizados, numa espécie de neopopulismo.

Impeachment
“Nessa democracia de massas, a dialética do pluralismo — a autonomia dos sujeitos políticos coletivos — não anula, antes impõe, a busca constante da unidade política, a ser construída de baixo para cima, através da obtenção do consenso majoritário; e essa unidade democraticamente conquistada será o veículo de expressão da hegemonia dos trabalhadores”, propugnava Coutinho. Aconteceu o contrário.

Ocorre, porém, que o Brasil já é uma democracia de massas, com todos os defeitos que possam existir no nosso sistema eleitoral e partidário. Nosso sistema eleitoral é o mais eficiente do mundo, com eleições livres e à prova de fraude, cujos resultados são apurados no mesmo dia da votação. Isso não significa que os eleitos tenham poderes imperiais, acima da lei. Há mecanismos constitucionais para coibir os abusos e apear do poder aqueles que não se conduziram de acordo com as regras do jogo, ou seja, com responsabilidade. O que houve com a presidente Dilma Rousseff em nada foi diferente do que ocorreu com o presidente Collor de Mello. Utilizaram-se os mesmos mecanismos para afastá-la do poder, por decisão do Congresso homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Michel Temer assumiu o poder porque eleito pelas forças que hoje se arrependem de tê-lo escolhido para vice-presidente da República. Era o substituto legal da presidente afastada do poder. Não foi a antiga oposição que o escolheu, embora agora tenha a obrigação moral de apoiá-lo até as eleições de 2018. Temer assumiu um país arruinado por uma política econômica desastrosa, comandada por governantes e empresários temerários, que se achavam acima do bem e do mal.

Mas onde está o democraticídio? Em primeiro lugar, no fato de que o governo Temer responde aos mesmos questionamentos que o governo anterior quanto à recessão e ao desemprego, embora não seja responsável por isso. Em segundo, porque também sofre as consequências da crise ética, na medida em que avança a Operação Lava-Jato. Terceiro, porque essa situação estressa as relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que precisam tomar decisões complexas e duras em relação às duas variáveis anteriores. Finalmente, porque os setores que adotam a narrativa do golpe não estão nem aí para os riscos de um colapso institucional. Querem apenas desestabilizar o processo, para não ter que explicar seus próprios erros; em alguns casos, nem pagar pelos crimes que cometeram.